"AS
CARTAS DE DANIELLE"
Marcelo
era um escritor brasileiro em viagem a Paris. Resolvera conhecer a cidade luz,
um sonho que sempre tivera e por lá estava calmamente a apreciar cada detalhe
que a cidade poderia lhe oferecer.
Uma
certa noite, após o jantar, resolver ir até um cyber café, um local alternativo
de Paris, quando reparou uma moça sentada, lendo um de seus livros, traduzidos
para o francês. De cabelos curtos, óculos, parecia estar compenetrada na
leitura e não havia percebido a entrada do autor do livro que ela estava lendo.
Marcelo
não quis incomodar e sentou-se em uma mesa, abrindo seu laptop, visando
escrever mais uma de suas histórias. Deixou um pouco de lado a imagem daquela
moça, que chamara muito sua atenção, mas não conseguia desviar o olhar.
De
repente ele percebeu que a moça caminhava em sua direção com o livro, quando
ele deduziu que ela, por óbvio o havia conhecido.
Dirigindo-se
a ele, ela diz:
“Excusez-moi monsieur, vous êtes
Marcelo? l'écrivain?”
Marcelo,
sem entender, arrasta as únicas palavras que sabia dizer em francês:
“Excusez-moi, je ne parle pas
très bien le français’
Percebendo que seu sotaque era horrível, a moça então diz, em inglês,
língua que ele entendia bem : Desculpe, você é o Marcelo ? O
escritor?
Deixando escapar o sorriso ele diz : Sim, sou eu ! – tomando o livro das mãos da menina, ele
diz : a quem devo dedicar ?
A menina então, corada, responde :
-
Danielle Nouvingnon !
Marcelo
não pode deixar de admirar o nome da moça. Era lindo, musical, mas algo nos olhos
daquela mulher mostrava que, por trás daquela face corada, algo muito maior se
escondia, incompreendido e assustado, gritando pela liberdade.
Ele
pudera reparar desde quando entrou pela porta que seus olhos diziam mais que
suas palavras, mas ele não sabia exatamente o que.
Após
conversar por algum tempo, aquela moça que estava sentada, quieta, lendo uma de
suas histórias, despertara um interesse muito grande em Marcelo. Ao longo da
conversa, ele pode perceber que ela, Danielle, era uma moça com uma vida
aparentemente controlada, a família a amava e respeitava, era casada com uma
pessoa muito importante no meio parisiense, tinha filhos.
Mas
seus olhos diziam algo mais profundo, algo mais secreto, algo mais íntimo, algo
guardado a sete chaves.
Depois
de passar momentos muito agradáveis com Danielle, Marcelo despediu-se, mas
antes, prometeram que se corresponderiam à moda antiga: trocado cartas! Claro
que os olhos da moça se encheram, afinal de contas estava ela prestes a manter
contato com o escritor que admirava por demais e sentia nele que poderia, de
fato, ter alguém com quem contar e para quem contar seus mais profundos
segredos, até então escondidos e sufocados.
Marcelo,
por sua vez, ficara encantado por Danielle. Enxergava nela o que de mais lindo
poderia existir em Paris, tudo aquilo que dava charme à cidade, algo para se
guardar como lembrança para sempre e se usar como modo de descrever os melhores
momentos de uma viagem inesquecível, algo que para sempre estaria gravado na
memória e que seria lembrado e contado. Via naquela acanhada moça uma pessoa
que valeria a pena ter do lado pelo resto da vida, uma companheira de longas
conversas, aquela amizade descompromissada... ele, de fato sentia falta disso.
Danielle era assim, aparecera de repente e fizera toda a diferença.
No
dia seguinte Marcelo voltou ao Brasil, mas com Danielle ainda na cabeça.
Decidiu então mandar a primeira carta, explicando a satisfação em conhecê-la.
Pensou em algo muito simples, nada muito rebuscado ou longo, apenas para que
começassem a se comunicar:
“Querida Danielle, como primeira
correspondência eu gostaria apenas de dizer que foi um enorme prazer conhece-la
e, mais ainda, poder descobrir sua amizade. Mas o melhor de tudo isso foi poder
saber que eu ainda vou descobrir o que seus olhos realmente querem dizer a seu
respeito! Com carinho, Marcelo”
Apesar
de saber que seria um abuso dirigir-se a ela daquela maneira, Marcelo estava ávido
por saber o que Danielle sentia realmente, o que ela escondia e por qual razão
ela o olhava daquele jeito que ele não sabia explicar.
Pois,
naquele mesmo dia, postou a carta e, por algumas semanas esperou ansiosamente a
resposta. Quando já estava pensando que sua curiosidade o havia traído, eis que
chega a tão esperada resposta:
“Querido Marcelo, gostaria muito de te dizer
o que realmente meus olhos traidores puderam denunciar, mas tenho um medo
lancinante de que não nos falemos mais, caso eu revele. Não sei o que você
pensaria de mim, qual imagem faria a meu respeito e, por essa razão, prefiro
castigar meus olhos reveladores a entregar minhas aflições. Com carinho, D.N.”
A
curta resposta de Danielle só serviu para deixar Marcelo mais intrigado a ponto
de, naquele mesmo momento responder a carta de Danielle da forma mais curta e
direta possível:
“O que pode ser tão grave que me afastaria de
uma pessoa que está do outro lado do mundo? Ou será que você está fazendo uma
imagem errada a meu respeito?”
Dessa
forma, curta e direta, Marcelo tencionava descobrir o que a menina escondia por
trás daquele sorriso meio acanhado. Não que isso pudesse, de fato, mudar a
relação dos dois, até porque a amizade já estava consolidada naquela altura do
campeonato, mas ele queria saber mais, queria poder ajudar caso fosse algo
sufocante demais para se aguentar sozinho.
Teve
de conter a curiosidade e a aflição, já que, passados quase dois meses não
obtivera a resposta. Já imaginara mil coisas, que teria se excedido na
curiosidade e a moça havia se sentido meio que embaraçada com tais perguntas.
Quando se dispusera a escrever-lhe nova carta, eis que o carteiro deixava a
correspondência que ele tanto esperava. Um pouco mais longa, Danielle explicava
um pouco de suas aflições:
“Querido Marcelo: de fato meus olhos me
traíram aquele dia e deixaram escapar uma Danielle que nem todo mundo, ou
melhor, que ninguém conhece... por detrás dessa pessoa bem esclarecida, com um
casamento estável, com um marido importante no meio parisiense existe uma
mulher que constantemente entra em conflito consigo mesma! Que consegue gostar
de uma pessoa que nunca terá e que sente culpa por sentir. Culpa por sentir que
está traindo o homem que lhe dera toda a segurança, que fora seu companheiro a
vida toda, que lhe dera uma família, um lar, que estivera ao seu lado nos
melhores e piores momentos da sua vida, que era amoroso, carinhoso. Não
consegue olhar para ele sem sentir culpa e, ao mesmo tempo, sente queimar
dentro de si uma chama que só cresce, só faz aumentar por esse amor impossível.
Essa meu amigo, é a Danielle que estes olhos traidores revelaram. A Danielle
ingrata que merece mais se esconder a revelar o que realmente a aflige. Agora,
caso isso seja um empecilho para você, se entender que eu seja uma pessoa ruim,
que não mereça a sua amizade, eu entenderei se você não quiser mais falar
comigo. Sinto-me a pior das pessoas agindo dessa forma, mas você precisava
saber que eu estou em constante conflito comigo mesma e sinto-me mal por conta
disso. Não consigo dormir direito, comer direito, mal consigo trabalhar por
conta desse sentimento. A culpa me consome meu amigo e essa culpa vem lado a
lado com a certeza desse desejo impossível de se realizar. Você deve pensar que
eu sou uma maluca apaixonada de histórias impossíveis. Entenderei qualquer
atitude sua, muito embora sentiria imensamente sua falta. Com carinho, D.N.”
Ainda
meio atônito, Marcelo esperou um momento antes de pensar o que achava de tudo
aquilo. Depois de ler uma três vezes aquela missiva, pensou consigo mesmo: As
pessoas estão acostumadas a enxergar sempre o que está por fora, a vida da
pessoa e o “quão agradecida” ela deve ser por tudo o que tem e o que
conquistou, sem se preocupar com o que ela pensa ou sente na verdade. Estamos
acostumados com o que é bonito para os olhos, com o que é prudente, com o que é
estável. Não queremos, ou menor, não nos interessamos com as aflições do mundo.
Apenas com o que é moral e ético, não com o que é bom, prazeroso ou que nos
leva à felicidade. A felicidade alheia não importa muito, só o que os olhos
enxergam. No fundo Danielle também pensava assim, só não havia aceitado isso
ainda. Ao esconder isso tanto tempo, por medo do que algumas pessoas poderiam
pensar ou o que ela mesma pensava disso, ela vinha amargando a mais remota
solidão e sendo sufocada a cada dia mais. Ela própria aceitava essa posição de “pária”,
de culpada, sendo que isso nada tinha a ver com culpa ou vergonha. Apenas um
sentimento que qualquer um pode sentir, passível de acontecer com qualquer
casamento, por melhor que seja. O mundo muda constantemente e assim também são
as pessoas. O cansaço aparece para todos. A relação humana é difícil mesmo e
todo dia fazemos um exercício de superação e de pesagem de prós e contras,
talvez fosse isso que faltasse a Danielle. A “tal balança da verdade”.
Após
escrever-lhe todas essas palavras, Marcelo arrematou a carta dizendo:
“É assim que penso a respeito, agora não sei
dizer de onde você tirou a idéia de que eu poderia me afastar de você por conta
disso? Pelo contrário! Quero saber mais sobre essa pessoa tão especial que te
fez sentir desse jeito! Nem preciso te dizer que esse será um segredo nosso,
que guardarei como se minha vida dependesse disso. Com carinho, M.”
E
assim Marcelo encerrou sua carta, mas se enganara em um aspecto: pensara que,
com essas palavras, que de fato era muito sinceras, Danielle se empolgaria e
responderia mais rápido suas cartas, que teria finalmente conquistado sua
confiança. Mas a sua aflição aumentou quando, após quase cinco meses não obteve
resposta.
Decidira,
então, não procura-la mais. Pensara que havia perdido de vez aquela menina doce
que encontrara na mais charmosa das cidades. Preparava-se para aceitar essa
idéia.
E
mais uma vez, seguiu sua vida! Levantou-se, tomou seu banho matinal, seu café
da manhã e saiu em direção à editora onde publicava seus livros, quando, ao
checar a caixa de correio percebeu que havia uma carta de Danielle, que acabara
de ser entregue. Ali, tudo estava explicado, o preto no branco, a aflição e as
noites mal dormidas, a falta de apetite e a culpa que sentia.
Tudo
fazia sentido! E Marcelo, sentado na guia, tamanha a surpresa, leu em voz alta
essas palavras:
“Querido Marcelo: você não sabe a alegria que
sinto e perceber que você realmente se mostrou um amigo fiel, o mais fiel de
todos. De fato é difícil demais lidar com toda essa situação sozinha. Eu mesma
achei que estava ficando louca e me julguei, como ainda me julgo, por tudo o
que sinto. Eu realmente me acho a pior das pessoas, inobstante tudo o que você
tenha me dito. Na verdade, saber que posso contar com você é o maior presente
que eu poderia receber. Portanto, a minha falta de sono, minha falta de
apetite, minha falta de concentração são por sua causa Marcelo. Sempre te
observei à distância e sempre nutri um carinho muito grande por você, muito
embora você mal soubesse da minha existência. Mas esse carinho transformou-se
em um desejo muito forte, quase incontrolável que eu guardei comigo por muito
tempo. Mas eu não acho justo que o objeto desse desejo fique sem saber o que
está acontecendo. Em contrapartida eu sei que esse é um desejo impossível de se
concretizar. Sei que você tem sua vida e eu não quero interferir em nada. Mas a
cada livro seu, a cada história nova eu percebia o quanto queria ter você a meu
lado. Mas infelizmente, além de não poder realizar esse desejo, ainda deixei
que meus olhos me traíssem naquele cyber café aquele dia. De fato eu tenho uma
vida maravilhosa, estável, mas não consigo parar de pensar em você e na falta
que você faria caso eu perdesse você de vista. Esse é meu maior medo. Não quero
ser mais um problema para você. Você não merece. Deve estar pensando que eu sou
uma maluca apaixonada nesse momento e, eu posso ter colocado tudo o que
construímos a perder, mas você precisava saber disso. Há tempos venho lhe
acompanhado a distância nutrindo uma admiração que só aumentou com o tempo. Com
carinho, D.N.”
Marcelo,
apesar de meio atônito, não poderia dizer que estava surpreso. Afinal de contas
já perceber a ternura no olhar daquela moça, mas achava que tudo não passava de
uma admiração pelos livros que publicara, pelas palavras que escrevera. Mas não
poderia imaginar que a admiração superasse tudo isso!
E
gostava de Danielle. Mas queria poder gostar mais! Queria que menos fossem os
impedimentos, menos fossem os problemas para retribuir toda essa admiração e
carinho expressos por ela ao longo dessa carta. Queria ter uma vida mais fácil,
com menos problemas para fazer dela uma mulher feliz, dar-lhe o carinho que
merecesse.
Mas
a vida prega peças na gente às vezes. As coisas aparecem como um furacão na
nossa vida quando estamos apenas com um guarda chuva no meio de uma estrada e,
dependendo da atitude que a gente toma (ou corre ou enfrenta a tormenta), a
gente põe tudo a perder.
Danielle
era uma mulher fascinante, apaixonante. Mas fatalmente se perderia como a brisa
de um dia ensolarado caso desse errado. Queria Marcelo ser o mais correto com
Danielle e mantê-la do seu lado pelo resto da sua vida, muito embora ela talvez
não entendesse esse seu ponto de vista.
Marcelo
sentia vontade de falar com ela todos os dias, contar de sua vida, de seus
amores (muito embora soubesse que isso não seria possível) e ouvir sobre os
seus. Era aquele tipo de pessoa pela qual enfrentaria exércitos para, apenas,
poder ver o sorriso. E seu sorriso ela valioso demais para se perder em meio a
um eventual relacionamento mal resolvido. As marcas seriam indeléveis nos
corações dos dois. E o amor por Danielle era maior que isso tudo. Isso mesmo,
nessa altura do campeonato percebera que amava Danielle. Talvez não do jeito
que ele quisesse ou merecesse, mas um amor forte o suficiente para fazer valer
a pena cada momento ao seu lado, ainda que como um amigo, confidente. Talvez
encontrara, ali, o amor verdadeiro. Aquele que não mede esforços para colher um
sorriso apenas, uma tarde de conversa, um “bom dia”. Seria essa a essência do
amor que todos dizem?
Não
sabia.
Mas
tinha certeza que esse amor, ainda que fraternal, era o mais puro que sentia em
anos! Um amor descompromissado e que nada tem a cobrar.
Mas
com esse amor, recém descoberto, vinha o pesar. O pesar de saber que, assim
como Danielle não seria correspondida em seu amor, ele também poderia não ser
nesse seu amor fraterno.
E
ali, sozinho, por um tempo refletiu e escreveu essas palavras a ela. Omitiu
apenas o pesar de não ser correspondido, mas manifestou o pesas por não poder
correspondê-la, não da maneira que gostaria ou que ela mereceria.
O
final dessa história? Ah, meu caro leitor, deixo a cargo de você o que pensar.
Muitos gostariam que Marcelo fosse correndo até Danielle, talvez até o próprio
Marcelo assim quisesse. Outros concordariam com ele e prefeririam manter uma
pessoa perto pelo resto da vida (o que poderia ser um grande exercício de
egoísmo, dependendo do ângulo pelo qual se enxerga tudo isso).
Mas
a grande lição que eu (Leandro) tirei dessa história (puramente fictícia) é que
o verdadeiro amor não é previamente fabricado com uma fórmula preestabelecida. Pelo
contrário, ele vem bruto, como um bloco de argila e a gente vai moldando até
que ele fique do jeito que a gente quer com os “ingredientes” que a gente quer.
Ele chega sem avisar, cai no colo da gente e dele a gente não consegue fugir.
Cabe
a nós fazermos dele uma coisa inesquecível ou algo que nos arrependamos
piamente, cada dia de nossa vida.
Não
irei escrever aqui a resposta de Danielle ou como ficou o relacionamento de
Marcelo com a sua mais célebre leitora, mas apenas fiquem com essas últimas
palavras e façam a vocês essa pergunta: será que eu já me deparei com esse amor
verdadeiro alguma vez?
O final dessa história ainda parece distante.
ResponderExcluirÉ uma linda e comovente história de amor, que parece ter virado de cabeça pra baixo a vida de duas pessoas tão diferentes e tão semelhantes.
Que o amor, seja de qual tipo for, prevaleça e que ambos possam crescer com a experiência.
Parabéns pelo texto!
E.O.
Querido(a) E.O.
ExcluirObrigado pelas palavras e por ser assiduo(a) seguidor(a) do blog. Esse é um espaço nosso! Realmente o final da história parece bem distante, mas eu deixo para cada um dar seu próprio final para ela! Dê você também o seu, caro(a) amigo(a)!
Mexeu comigo... já estive nesse terreno. E como dói, só Deus sabe o quanto!
ResponderExcluirCaro(a) amigo(a).
ExcluirTodos nós já estivemos nesse terreno,s ei como dói tb. Não só para quem está na posição de Danielle, mas também na posição oposta pois não é fácil dizer não a uma promissora história de amor. Às vezes a razão faz com que percamos o que de melhor pode acontecer, às vezes não. Mas se a gente soubesse de antemão, que graça teria a vida né? Grande abraço e uma pena não ter deixado o nome.
Gostei muito, me identifiquei!!!
ResponderExcluirCaro(a) Amigo(a).
ExcluirFico feliz que tenha gostado do texto! Isso me anima cada vez mais a seguir tecendo palavras!
Abraços