ELA NÃO VAI MAIS
VOLTAR
Hoje
seria nosso aniversário de casamento. Digo que seria, pois há cinco anos não
tenho mais notícias dela. Partiu sem deixar qualquer indicio de que voltaria ou
de que teria ido de vez. As coisas ainda estão no lugar, as roupas, os livros,
os óculos que ela odiava usar.
Eu
ainda conseguia sentir o cheiro do seu perfume como no dia em que nos
conhecemos. Sentia falta dela.
Não
consigo dormir direito desde aquele dia e nem os remédios tem ajudado. Acordo
no meio da noite pensando no motivo que a fez ir embora de casa sem aviso, sem
dar algum motivo.
Estaria
disposto a aceitar qualquer justificativa, plausível ou não. Seria mais fácil e
consequentemente eu teria um pouco de paz na minha vida. Mas não. Ela deixou
comigo apenas a ausência e a lembrança. Um buraco que fica maior a cada dia,
alimentando-se da incerteza e da esperança de voltar a vê-la.
Ainda
me lembro do fatídico dia em que ela disse que faria uma viagem a contragosto.
Mal nos falamos aquele dia. Ela estava apreensiva, parecia não querer sair de
casa. Aparentava cansaço, insatisfação.
Aquele
comportamento já durava algumas semanas e eu não entendia por qual razão. Eu
sei muito bem que não fui o marido que ela sempre mereceu. Tive minhas falhas,
mas eu merecia ao menos uma explicação ou, ainda, um “estou indo embora, pois
não estou feliz com você”.
Durante
o primeiro ano eu procurei me conformar das maneiras que encontrava, ainda sem
aceitar que tudo tinha acabado de forma inexplicável. Tentei seguir de cabeça
erguida, viver minha vida e entender que, se ela partiu é porque não me queria
mais.
Mas
ela era o amor da minha vida, a mulher que trouxe de volta a fé no amor, que eu
havia perdido há muito tempo. Da mesma forma que nos conhecemos por acaso, tudo
acabou sem muita explicação.
Apenas
acabou. Ela se foi e eu tive que aprender a lidar com a falta daquilo que mais
me fazia feliz. Sua presença me acalmava e, por pior que eu estivesse, seu
sorriso me confortava.
Só
que ela não estava mais ali e eu não sabia o motivo.
Eu
precisava saber. Precisava ouvir da boca dela que eu fui um lixo a vida toda ou
que ela simplesmente tinha se cansado de mim, ou, ainda, tivesse se apaixonado
por outra pessoa. Eu saberia lidar com esse sentimento e teria seguido em
frente há muito tempo.
Respostas
que eu não tenho.
No
segundo ano, em nome de todo o amor que eu jamais deixei de sentir por ela,
abandonei tudo e passei a procura-la pelos lugares onde eu sei que ela era ou
foi feliz. Caminhos que sempre fizeram com que seus olhos brilhassem ao menos
por um momento.
Desde
então essa tem sido a minha rotina, procura-la incessantemente para dizer mais
uma vez “você foi e ainda é o grande amor da minha vida e caso não queira
voltar, siga sua seu caminho sabendo apenas que ninguém nesse mundo te amará
como eu amo.”
Eu
estava decidido e para tanto abandonei a vida pacata que levava e me lancei no
mundo atrás dela. Vendi minhas posses e caí no mundo. Nada mais importava,
apenas poder ver, ainda que só mais uma vez, seu sorriso, poder ouvir sua voz e
seus olhos fitando os meus. Só mais uma vez. Era só o que eu precisava. Uma
única vez. Nada mais.
Visitei
países, lugares, cidades. Conversei com pessoas, procurei autoridades. Em vão.
Em um dado momento os recursos foram acabando e eu tive que me virar dormindo
em albergues e muitas vezes até no relento. Eu não me importava com nada
daquilo, desde que pudesse encontrá-la.
Ninguém
sabia dela. Nenhuma noticia. Nada.
Em
uma das vezes, dormindo em uma calçada qualquer não consegui conter as
lagrimas. Fazia frio. Ameaçava chover e tudo o que eu tinha era uma velha e
suja marquise para me abrigar e um trapo gigante que usava como cobertor. Era
uma situação difícil e eu sabia que a tendência seria piorar, pois minha
jornada parecia longe de acabar. Porém, eu não sabia onde ela estava, o que
estaria fazendo, se estaria na mesma situação, com frio, fome, triste, sozinha.
No terceiro para o quarto ano, ainda
procurando, desisti de mim. Entreguei-me a um estado calamitoso. Não mais
tomava banho, não fazia mais a barba. Tudo o que eu conseguia era pensar nela e
em mais nada. Ficava dias sem comer e até esquecia de me alimentar, lembrando
muitas vezes quando acordava depois de desmaiar de fome.
Cheguei
a tal ponto que indagava as mesmas pessoas várias vezes, tomado pelo desespero
e pela aflição de não ter noticias dela há tanto tempo. Certa vez uma pessoa
fez o seguinte questionamento: “por qual razão você insiste tanto em uma mulher
que te abandonou? Que não tem notícias? Não percebe que caso fosse de sua
vontade ela estaria ao seu lado?”
Eu
respondi: “Você sabe o que é encontrar aquele amor que traz a tranquilidade que
nenhum outro conseguiu trazer? O amor simples, maduro e sem cobranças? Amor por
si só, sem esperar nada em troca? Não sabe. Então jamais saberá a dimensão do
meu sofrimento”.
Passados
todos esses anos eu continuo a procurar, mas aquele fio de esperança parece
cada vez menos firme. Mas ainda existe. No fundo eu sei que de alguma forma nós
acabaremos por nos encontrar em algum lugar e eu então poderei dizer o quanto
esses anos foram difíceis sem ela.
-
Papai, a mamãe não vai mais voltar – interrompeu a voz doce de uma jovem que,
com um olhar triste e ao mesmo tempo reconfortante, olhava-me de volta. Colocou
a mão sobre meu ombro e prosseguiu:
-
A mamãe faleceu em um acidente de avião, naquela viagem a trabalho, que ela vivia
dizendo que não queria ir. Todos sofremos papai. Mas o senhor ao saber da
notícia entrou em profundo desespero e pulou da sacada... quase perdemos o
senhor também no mesmo dia.
E
me mostrando todos os jornais da época, a lista de vitimas e a foto dela eu
pude me convencer que toda minha busca havia sido em vão.
-
Então – disse eu – você é... minha filha? Então... ela não vai mais voltar? Mas
e todas essas lembranças? E todo esse tempo que eu procurei?
Nesse
momento uma voz forte e grave cortou o silencio que minhas questões causaram
dizendo:
-
Eu explico – percebi nesse momento um senhor alto, de jaleco branco sentando-se
ao lado de mim no que parecia um banco em um jardim que até então eu não tinha
reparado – O senhor sofreu uma grave lesão cerebral ao cair da sacada. Com a
queda sua cabeça acabou se chocando com a sacada debaixo, ocasionando perda de
massa encefálica. Em consequência disso a parte do cérebro responsável pela
memoria foi afetada irreversivelmente e, por essa razão o senhor não se lembra de
nada sobre o acidente. Porém, a gravidade foi tamanha que algumas outras
situações foram “apagadas”, como a existência de sua filha por exemplo. Nada do
que o senhor relatou existiu de verdade. Os lugares, as pessoas, a dificuldade,
a marquise, o cobertor, a chuva. Tudo isso não passa de uma invenção da sua
mente. O senhor está aqui há cinco anos sendo cuidado por nossa equipe e como o
senhor pode perceber estamos em um hospital psiquiátrico especializado em casos
como esse onde podemos dar uma maior assistência e conforto aos pacientes. Por
mais que não tenha consciência eu posso dizer que estamos cuidando muito bem do
senhor.
Parei
por um instante e olhei aquela jovem que estava do meu lado:
-
Você é a cara da sua mãe. No fim das contas eu sabia que iria encontra-la,
ainda que vivendo apenas em um olhar.
-
Ela te amava demais papai, vivia dizendo isso para todos – disse a filha – Foi um
marido maravilhoso e um pai exemplar enquanto teve condições.
De
certa forma eu me senti reconfortado naquele momento. Porém, por pouco tempo,
pois tudo o que eu havia vivido até então não passava de uma mentira, de algo inútil,
uma busca sem resultados e nem poderia ter! Ela não vai mais voltar!
-
Acalme-se papai, ainda há mais a dizer. O Dr. Precisa contar algo importante –
disse minha filha tentando acalmar meu descontrole ao perceber que eu jamais
veria o amor da minha vida.
-
Sim, eu preciso contar algo difícil e preciso que o senhor esteja preparado –
disse-me o médico – A lesão cerebral permite que o senhor tenha pequenos
momentos de sanidade que duram em média uma semana, às vezes até menos. Isso
quer dizer que daqui uma semana o senhor esquecerá toda essa conversa e voltará
a pensar que está procurando por sua falecida esposa. Não se lembrará mais da
sua filha, muito embora ela venha lhe fazer visitas constantes. O que posso
garantir é que o senhor está muito bem cuidado aqui e eu pessoalmente tratarei
para que assim continue.
-
Então minha filha eu não lembrarei mais de você daqui a alguns dias? Perdão por
todo esse sofrimento que eu venho causando mesmo depois da morte da sua mãe. –
eu disse
-
Papai eu estarei sempre ao seu lado! Por mais que o senhor não me reconheça eu
estarei aqui, não sairei do seu lado! O senhor jamais estará sozinho! Terá a
mim pelo resto da vida e enquanto eu tiver forças estarei aqui, segurando sua
mão quando tivermos, mais uma vez, que te dar essa triste noticia. – disse minha
filha, segurando minha cabeça contra seu peito.
Por
mais que toda aquela situação tenha me destruído por dentro, por mais que as
lagrimas da minha filha estivessem cortando meu coração, por mais que eu
soubesse que não me lembraria do rosto dela e que daqui alguns dias seria mais
um maluco internado naquele lugar, falando coisas desconexas e sem o menor
cabimento, no fundo eu estava feliz.
Sim,
feliz!
Pois
eu sabia que daqui a uma semana, mais uma vez, ela estaria viva na minha cabeça
e a esperança por encontrar o grande amor da minha vida estaria de volta no meu
coração. Na minha mente devastada estaria a ideia de que eu me lancei ao mundo
para encontrar meu único amor.
Esse
sentimento venceu a morte, a loucura, a tristeza, a dor. E mesmo que fosse uma
mentira, ao menos na minha cabeça ela continuaria viva e nosso amor jamais se apagaria.