domingo, 1 de setembro de 2013

“A CRIANÇA CRESCEU, O SONHO ACABOU"

 
Muita gente me pergunta de onde eu tiro os textos que escrevo. Muito bem, eu já disse outras vezes que sou meio que “um instrumento nas mãos dos textos”, ou seja, apenas exteriorizo o que já está pronto.
Mais ainda, eu costumo unir fragmentos que surgem na minha mente e parecem ser atraídos um em direção ao outro, formando o “produto final”.
Sabendo disso que pego uma citação de Comfortably Numb do Pink Floyd: “The child is grown, the dream is gone”, ou seja, a “criança cresceu, o sonho acabou”.
Digo isso, pois nos últimos dias refleti muito e cheguei à conclusão de que tive uma infância muito feliz.
Como cheguei a esse pensamento?
Vou lhes contar.
Sempre me perguntei de onde vinha meu fascínio pela estrada. Nunca havia concluído a resposta.
Como muitos sabem, minha profissão (advogado) exige que eu ande muito, que esteja nos lugares mais distantes da cidade.
Em direção a um desses lugares, na estrada, tive uma sensação estranha e, por alguns segundos eu percebi minha infância passar diante dos meus olhos e, então, tive a nítida noção de que fui a criança mais feliz do mundo.
Eu nunca tinha pensado nisso, até aquele dia.
Por força das consequências, minha mãe se mudou de Minas Gerais para São Paulo, em busca de uma vida melhor, melhores condições de trabalho.
Nesse processo, deixou a família toda e veio tentar vida nova aqui na nossa cidade, onde conheceu meu pai.
Casaram-se, tiveram quatro filhos e aqui se estabeleceram.
Mas as visitas aos parentes de Minas sempre era frequentes.
Afinal de contas, os pais e os irmãos lá ficaram.
Para nós, crianças, tudo era festa. Adorávamos viajar.
As quase dez horas de ônibus não eram problema, pois simplesmente nos encantávamos com tudo aquilo.
Mas o que ninguém sabia (inclusive eu) é que aquelas viagens tinham um sabor especial.
Ali na sala de espera da rodoviária, aguardando o ônibus que nos levaria eu olhava ao redor e tinha pena das outras crianças pois, todas iriam viajar, mas só eu iria ver a minha avó.
Nenhum deles iria ver a minha avó!
Eu era a criança mais feliz do mundo pois eu era o único (além dos meus irmãos) que poderia dizer de peito aberto que iria visitar a minha avó!
Ninguém tinha (ou tem ou teve) uma avó como a minha.
Dizem que avó é mãe com açúcar, mas a minha não sei definir o tanto de açúcar usado na sua fabricação, pois ela simplesmente é única.
Ao entrar no ônibus eu já começava a imaginar a recepção, o abraço que ela nos daria, as guloseimas e as duas garrafas de café que ela sempre fazia.
Isso mesmo!
Ela sempre fazia duas garrafas de café, uma mais forte e uma com um café um pouco mais fraco.
Tinha para todos os gostos.
Quando meu avô ainda era vivo a sensação era ainda melhor pois ele realmente fazia todas as nossas vontades (contrariando inclusive as instruções de meus pais).
Mas nada se comparava a sentir que minha avó estava tão perto, na distância de duas paradas para ir ao banheiro e tomar um café.
Quando chegávamos na cidade e sentíamos o cheio daquela terra parecia que o espirito saía do corpo e era transportado para uma dimensão onde tudo era perfeito.
Era difícil conter a ansiedade por chegar na casa dele e ver aquele avental, o pano de prato nas mãos e o lenço na cabeça cobrindo a vasta cabeleira que se manteve enrolada por toda a vida.
Ah minha vozinha querida, que saudade eu tenho da senhora.
Sinto falta das tardes em volta do fogão à lenha onde a senhora me explicava as diversas nuances do mundo, à sua maneira.
Onde sempre, acompanhando as fábulas, tinha uma guloseima ou outra para beliscar enquanto ficava ali só olhando o fogo queimar a lenha lentamente e ouvindo sua doce voz me mostrando que tudo o que era importante para a vida era a simplicidade.
Eu sempre disse que lá era meu lugar especial, meu paraíso particular.
Mas, não tem mais fogão à lenha, nem tardes de fábulas, nem tantas guloseimas assim.
A vida ficou dura e chata demais minha vozinha querida.
Aquelas tardes de sol em que eu ficava sentado olhando a senhora cozinhar não vão voltar mais.
Isso dói demais.
Sinto como se algo fosse abruptamente arrancado de mim com uma violência descomunal.
Não tem mais doce de leite, nem galinhada, nem mandioca cozida.
Eu cresci minha avó querida.
E talvez essa tenha sido a maior desgraça que aconteceu na minha vida.
Eu perdi a simplicidade que a senhora sempre me deu, que sempre me ensinou e, perdendo isso eu acabei perdendo o meu caminho.
Hoje, desorientado e sem rumo, eu só queria ter a chance de voltar no tempo e ouvir mais histórias sobre o mundo do jeito que a senhora enxergava.
Naquele tempo eu tinha muitos sonhos.
Hoje não tenho mais tempo para sonhar.
Como disse, o mundo virou um lugar chato e cansativo.
A inocência perdida não volta e isso me faz falta.
Muita gente diz que “se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo”.
Pois eu digo, minha avó querida, algumas coisas eu melhoraria, ou faria diferente.
Eu ouviria mais a senhora.
A maior dor do ser humano é descobrir que a vida passou e ele foi apenas um expectador, ignorando vários sinais que foram dados para que ele parasse e continuasse dali.
Por mais que ainda resta vida, nunca será tempo suficiente para apagar alguns erros que deixamos para trás e que, constantemente voltam à tona jogando um balde de arrependimento na nossa cara.
Minha vida passou minha avó.
O que sou hoje não reflete aquele menino que ficava horas e horas olhando a senhora cozinhar à beira do fogão à lenha.
Que chorava por dias quando tinha que voltar para casa.
Eu perdi aquela simplicidade e, perdendo-a, sei que ficou para trás parcela considerável da minha vida.
Mas se um dia fosse concedido, ainda que em meu leito de morte, algum desejo, eu voltaria no tempo minha avó querida.
Captaria toda a sua simplicidade a aplicaria na minha vida e, com certeza, seria uma pessoa muito mais feliz.
Mas a criança cresceu e perdeu seus sonhos...
A vida segue e, essa criança deve reaprender a viver, mesmo sem sonhar, mesmo com todo o arrependimento e a culpa por não ter feito diversas coisas da forma mais correta.
Talvez ela tropece de novo, talvez ela chore mais, talvez ela não reaprenda a sonhar.
Mas só resta viver.
Arrependido, triste, mas de pé.
Mas enquanto tiver na minha mente a imagem do fogão de lenha aceso, eu tenho forças para tocar em frente!
Pois nem toda simplicidade se apagou do meu coração.
Usando das palavras de Hamlet: “...dormir... talvez sonhar...”
É o que posso fazer, tentar voltar a sonhar, pois a vida que ficou para trás não volta e é preciso aprender a conviver com isso, com a velhice que nos é imposta e com a impossibilidade de os momentos bons voltarem.
O tempo é um senhor cruel que cobra um preço alto e exige pagamento, mais cedo ou mais tarde.
Hoje eu estou pagando, reconhecendo que o tempo passou e muito ficou para trás.
Mas a esperança de novos momentos memoráveis que estão por vir arde como a chama do fogão de lenha aceso.
Abraçado a essa esperança, sigo adiante, com o resquício de simplicidade que me restou!