“TRINTA
ANOS DE CÁRCERE”
Todos
os anos que passei dentro da prisão me mudaram visivelmente. Endureci meu
coração, meu corpo envelheceu e adoeceu e eu perdi a alegria de viver.
Não
é fácil aceitar uma condenação e, após tantos anos descobrir que a liberdade está
longe de acontecer. Eu diria até impossível.
Quando
aqui fui trancado trouxe apenas algumas parcas lembranças e alguns metros cúbicos
de sofrimento, que foram renovados ao longo dos anos.
O
mais complicado disso tudo é perceber a injustiça daquela condenação e ter que
aceitar sem muito pestanejar. Não há recursos disponíveis que possibilitem
minha liberdade.
A
conversa que ouvimos nos primeiros dias de prisão é: “sou inocente”, “não
deveria estar aqui”, “o verdadeiro culpado está nas ruas”, “fui acusado
injustamente”, “não mereço isso”. Para muitos é o típico “papo de preso”.
Afinal de contas ninguém preza mais a liberdade que aqueles que não a tem. Esse
é um fato que não demanda maiores indagações.
Mas
eu realmente acreditava que aquilo não deveria acontecer comigo. Eu deveria
estar livre e não mereceria todo o sofrimento que me era imposto.
Mas
não é dessa forma que as coisas acontecem. Eu estava ali e deveria aceitar.
Fui
muito mal recebido pelos guardas. Sofri toda sorte de agressões físicas e
psicológicas.
Estava
sozinho.
Os
primeiros meses foram os mais difíceis. Pensei em me matar. Tentei me matar.
Porém, algo sempre impedia minha mão de dar o golpe derradeiro e por fim àquele
sofrimento. Essa força que me impedia parecia querer que eu sofresse daquela
forma. Com o passar dos anos passei a me conformar e a aceitar que aquela era a
cruz que eu deveria carregar.
Já
na primeira década na prisão aprendemos a difícil lição de aceitar a solidão
como sua melhor amiga dentro daqueles muros. Ninguém se importa com sua
segurança ou bem estar. Tudo ali não passa de uma mera questão de
sobrevivência: o mais forte sempre fica em pé. Essa lição sempre vem
acompanhada de toda sorte de tortura, psicológica e física.
Durante
20 anos fiquei em uma cela sozinho, sem a companhia de outros presos. Eu nunca
achei que aquilo fosse o melhor para mim, afinal de contas sempre é bom ter
alguém com quem dividir o peso da condenação. Mas não foi possível.
Eu
via muitos outros detentos morrerem e serem retirados em sacos plásticos. Eu
acompanhava aquela cena apoiado nas grades da minha cela, imaginando com
tristeza como foram gastos os últimos minutos de respiração daquele pobre
diabo. Por vezes imaginei e desejei que fosse eu naquele saco. A clausura te
faz pensar inúmeras coisas, a solidão só aumenta essa sensação.
Algum
tempo depois recebi alguns companheiros de cela. Eu sabia que não deveria
compartilhar muito dos medos e problemas com eles. Sempre dormia com um olho
aberto, afinal estamos falando de uma prisão onde sua vida vale menos que um
maço de cigarros.
Porém
todo esse tempo aprisionado parece ter feito com que meu cérebro, até então
notável, ficasse atrofiado. Confiei demais nesses “companheiros”.
Como
bom “anfitrião”, ofereci ajuda para mostrar o cotidiano daquele inferno, as
coisas ruins e as coisas péssimas (pois nada há de bom naquele lugar). Achei
que aquela atitude poderia ser boa para mim também, pois foram longos anos de
solidão.
Mas
a vida na prisão ensina que “quem oferece mais, tem mais aliados”. Na primeira
oportunidade, aliaram-se a alguns outros grupos e eu acabava por continuar
sozinho, desfrutando daquele massacre diário.
Existem
alguns pequenos grupos que vão recebendo novos membros ao longo dos dias. Eu não
pertencia a nenhum deles. Era um preso solitário.
Não
que eu não houvesse tentado e flutuado por diversas facções. Mas nenhuma
ofereceu a segurança que eu precisava naquele lugar. Pelo contrário, por vezes
fui espancado até perder a consciência. Certa vez acordei ao lado de um saco
preto para cadáver, que já estava reservado para mim, dada a quantidade de
ferimentos. Mas alguma força superior queria que eu continuasse vivo.
A
razão disso, nunca soube e acredito que nunca saberei.
Após
esse episódio fiquei isolado em uma área restrita por alguns meses. Como uma enfermaria.
Um local onde os demais presos não poderiam ter acesso a mim.
Pedi
então ao diretor do presídio que, em troca de minha permanência naquele local
eu pudesse desenvolver alguma atividade. Tudo o que eu queria era ficar
afastado daqueles que há algum tempo tentaram me matar.
Fiquei
então responsável por um grupo que recebia os presos agredidos e os encaminhava
ao setor de enfermagem.
O
trabalho era bem pesado e traumático, pois não muito raro recebíamos pessoas
inconscientes e desmembradas, dado o nível de agressão imposto por outros
presos.
Mas,
tantas outras vezes, era a oportunidade perfeita para começar alguma nova
amizade. Pode parecer bobagem, mas os que ali chegavam, em sua grande maioria,
apresentavam certo respeito por você, quando descobriam se tratar de mais um
sobrevivente àquele holocausto diário.
E
mais uma vez, já na terceira década de clausura, a vida na prisão mostra que
não se pode confiar muito. Certa vez, após tratar um preso por um longo
período, desenvolvemos certa amizade. Ele mostrava com orgulho fotos da família
e dos filhos e narrava com lagrimas nos olhos a difícil vida de quem tem dois
filhos doentes e necessitados de cuidados médicos constantes. Além do mais, sua
trajetória de vida era muito difícil, muito embora eu nunca tivesse perguntado
o motivo que o levara até aquele lugar.
Eu
nunca perguntava. Em minha cabeça eu achava que ouvir era mais importante do
que perguntar, sem preconceitos. Afinal de contas estávamos atados ao mesmo
destino, pouco importando o motivo.
Impossível
não nos sensibilizarmos com tal situação. Coloquei-me em seu lugar e ofereci
ajuda no que fosse preciso.
Em
uma madrugada, durante meu turno de observação, houve uma tentativa de fuga na
ala onde eu estava. Esse preso, liderando os demais, surpreendeu-me com cinco
facadas no abdômen, fazendo com que eu ficasse inconsciente, entre a vida e a
morte.
Depois
desse episódio não tive mais notícias dele e, honestamente, todas as vezes que
falo sobre isso as feridas doem.
Esses
anos têm sido muito difíceis. Além da confiança que não se pode ter nesse
ambiente, não tenho recebido muitas visitas. A família costuma se cansar em um
determinado momento. A vergonha toma o lugar da preocupação. É melhor conviver
com a sensação de que não há nenhum problema do que encarar o fato de ter um
parente ou amigo nessa situação.
Portanto,
conformei-me com esse tipo de solidão. Apesar de meu amor não ter mudado um
centímetro, entendo a posição deles.
Hoje,
porém, teria tudo para ser um dia diferente. Tinha grandes esperanças que minha
liberdade estaria muito próxima. Pedi uma audiência com o diretor do presídio
para que eu pudesse saber o saldo de pena que eu ainda teria a cumprir.
Quando
fui abandonado aqui pouco soube sobre minha condenação. Eu estava tão mais preocupado
em combater a injustiça do fato que me fez ser preso do que com a condenação
propriamente dita.
Pois
a desolação tomou conta do meu ser quando adentrei àquela sala. A última
esperança que eu nutria em meu coração foi abruptamente extirpada num piscar d’olhos.
Dizia
o diretor que, apesar de eu ter um comportamento até certo ponto razoável, nada
poderia fazer por mim, uma vez que minha condenação era perpétua e seria mais
prudente que eu arranjasse uma forma de conviver com aquela realidade (a qual
eu deveria estar acostumado há mais de trinta anos).
Não
há esperança que sobreviva, não há amor que ajude, não há fé que ampare.
Eu
apenas quis morrer naquele momento. Juro que procurei a morte nos dias seguinte
àquela notícia, mas ela parecia me evitar de alguma forma.
Um dia, no escuro de minha cela vazia,
coloquei-me a refletir e, de súbito entendi que o melhor seria aceitar a
condenação imposta a mim, mesmo que, no fundo eu ainda considere ser algo
totalmente desmedido, não há muito que fazer em relação a isso.
Resolvi,
então, escrever sobre ela.
Você,
caro leitor, que pensou se tratar de uma prisão, com carcereiros e criminosos
de todas as espécies, fico feliz que tenha pensado isso! Considere-se um
privilegiado.
Já
para você que, desde as primeiras linhas constatou que a “prisão” aqui descrita,
na verdade, trata-se da mente de um portador de depressão só lhe digo uma
coisa: “estamos juntos!”.
Sempre
adotei tal metáfora do cárcere. Na verdade é assim que eu me sinto: eterno
prisioneiro de uma mente atormentada pela tristeza e desolação constantes.
Pensamentos ruins fazem companhia e muitas facadas e espancamentos são
dirigidos a mim ao longo dos dias.
Recentemente
tive a triste notícia de que tal condenação não terá um final.
Quem
sabe uma liberdade condicional um dia? Ninguém pode saber. Essa parte, na
verdade, depende muito de mim. Tenho feito meu melhor para conseguir ver o sol
novamente e respirar o doce aroma da liberdade.
Por
enquanto estou por aqui, dentro das celas da minha fria, escura e suja cela,
escrevendo essas linhas como forma de aliviar um pouco o peso de quase 35 anos
nessa prisão desleal e injusta.
Não
posso esperar outra coisa de mim que não seja isso.
Mas
o sonho permanece vivo e, tão logo se concretize (o restante da fé que me
sobrou é direcionada a esse ideal) eu volto aqui para contar a vocês qual a
sensação de estar livre.