sexta-feira, 24 de outubro de 2014


“TRINTA ANOS DE CÁRCERE”


Todos os anos que passei dentro da prisão me mudaram visivelmente. Endureci meu coração, meu corpo envelheceu e adoeceu e eu perdi a alegria de viver.

Não é fácil aceitar uma condenação e, após tantos anos descobrir que a liberdade está longe de acontecer. Eu diria até impossível.

Quando aqui fui trancado trouxe apenas algumas parcas lembranças e alguns metros cúbicos de sofrimento, que foram renovados ao longo dos anos.

O mais complicado disso tudo é perceber a injustiça daquela condenação e ter que aceitar sem muito pestanejar. Não há recursos disponíveis que possibilitem minha liberdade.

A conversa que ouvimos nos primeiros dias de prisão é: “sou inocente”, “não deveria estar aqui”, “o verdadeiro culpado está nas ruas”, “fui acusado injustamente”, “não mereço isso”. Para muitos é o típico “papo de preso”. Afinal de contas ninguém preza mais a liberdade que aqueles que não a tem. Esse é um fato que não demanda maiores indagações.

Mas eu realmente acreditava que aquilo não deveria acontecer comigo. Eu deveria estar livre e não mereceria todo o sofrimento que me era imposto.

Mas não é dessa forma que as coisas acontecem. Eu estava ali e deveria aceitar.

Fui muito mal recebido pelos guardas. Sofri toda sorte de agressões físicas e psicológicas.

Estava sozinho.

Os primeiros meses foram os mais difíceis. Pensei em me matar. Tentei me matar. Porém, algo sempre impedia minha mão de dar o golpe derradeiro e por fim àquele sofrimento. Essa força que me impedia parecia querer que eu sofresse daquela forma. Com o passar dos anos passei a me conformar e a aceitar que aquela era a cruz que eu deveria carregar.

Já na primeira década na prisão aprendemos a difícil lição de aceitar a solidão como sua melhor amiga dentro daqueles muros. Ninguém se importa com sua segurança ou bem estar. Tudo ali não passa de uma mera questão de sobrevivência: o mais forte sempre fica em pé. Essa lição sempre vem acompanhada de toda sorte de tortura, psicológica e física.

Durante 20 anos fiquei em uma cela sozinho, sem a companhia de outros presos. Eu nunca achei que aquilo fosse o melhor para mim, afinal de contas sempre é bom ter alguém com quem dividir o peso da condenação. Mas não foi possível.

Eu via muitos outros detentos morrerem e serem retirados em sacos plásticos. Eu acompanhava aquela cena apoiado nas grades da minha cela, imaginando com tristeza como foram gastos os últimos minutos de respiração daquele pobre diabo. Por vezes imaginei e desejei que fosse eu naquele saco. A clausura te faz pensar inúmeras coisas, a solidão só aumenta essa sensação.

Algum tempo depois recebi alguns companheiros de cela. Eu sabia que não deveria compartilhar muito dos medos e problemas com eles. Sempre dormia com um olho aberto, afinal estamos falando de uma prisão onde sua vida vale menos que um maço de cigarros.

Porém todo esse tempo aprisionado parece ter feito com que meu cérebro, até então notável, ficasse atrofiado. Confiei demais nesses “companheiros”.

Como bom “anfitrião”, ofereci ajuda para mostrar o cotidiano daquele inferno, as coisas ruins e as coisas péssimas (pois nada há de bom naquele lugar). Achei que aquela atitude poderia ser boa para mim também, pois foram longos anos de solidão.

Mas a vida na prisão ensina que “quem oferece mais, tem mais aliados”. Na primeira oportunidade, aliaram-se a alguns outros grupos e eu acabava por continuar sozinho, desfrutando daquele massacre diário.

Existem alguns pequenos grupos que vão recebendo novos membros ao longo dos dias. Eu não pertencia a nenhum deles. Era um preso solitário.

Não que eu não houvesse tentado e flutuado por diversas facções. Mas nenhuma ofereceu a segurança que eu precisava naquele lugar. Pelo contrário, por vezes fui espancado até perder a consciência. Certa vez acordei ao lado de um saco preto para cadáver, que já estava reservado para mim, dada a quantidade de ferimentos. Mas alguma força superior queria que eu continuasse vivo.

A razão disso, nunca soube e acredito que nunca saberei.

Após esse episódio fiquei isolado em uma área restrita por alguns meses. Como uma enfermaria. Um local onde os demais presos não poderiam ter acesso a mim.

Pedi então ao diretor do presídio que, em troca de minha permanência naquele local eu pudesse desenvolver alguma atividade. Tudo o que eu queria era ficar afastado daqueles que há algum tempo tentaram me matar.

Fiquei então responsável por um grupo que recebia os presos agredidos e os encaminhava ao setor de enfermagem.

O trabalho era bem pesado e traumático, pois não muito raro recebíamos pessoas inconscientes e desmembradas, dado o nível de agressão imposto por outros presos.

Mas, tantas outras vezes, era a oportunidade perfeita para começar alguma nova amizade. Pode parecer bobagem, mas os que ali chegavam, em sua grande maioria, apresentavam certo respeito por você, quando descobriam se tratar de mais um sobrevivente àquele holocausto diário.

E mais uma vez, já na terceira década de clausura, a vida na prisão mostra que não se pode confiar muito. Certa vez, após tratar um preso por um longo período, desenvolvemos certa amizade. Ele mostrava com orgulho fotos da família e dos filhos e narrava com lagrimas nos olhos a difícil vida de quem tem dois filhos doentes e necessitados de cuidados médicos constantes. Além do mais, sua trajetória de vida era muito difícil, muito embora eu nunca tivesse perguntado o motivo que o levara até aquele lugar.

Eu nunca perguntava. Em minha cabeça eu achava que ouvir era mais importante do que perguntar, sem preconceitos. Afinal de contas estávamos atados ao mesmo destino, pouco importando o motivo.

Impossível não nos sensibilizarmos com tal situação. Coloquei-me em seu lugar e ofereci ajuda no que fosse preciso.

Em uma madrugada, durante meu turno de observação, houve uma tentativa de fuga na ala onde eu estava. Esse preso, liderando os demais, surpreendeu-me com cinco facadas no abdômen, fazendo com que eu ficasse inconsciente, entre a vida e a morte.

Depois desse episódio não tive mais notícias dele e, honestamente, todas as vezes que falo sobre isso as feridas doem.

Esses anos têm sido muito difíceis. Além da confiança que não se pode ter nesse ambiente, não tenho recebido muitas visitas. A família costuma se cansar em um determinado momento. A vergonha toma o lugar da preocupação. É melhor conviver com a sensação de que não há nenhum problema do que encarar o fato de ter um parente ou amigo nessa situação.

Portanto, conformei-me com esse tipo de solidão. Apesar de meu amor não ter mudado um centímetro, entendo a posição deles.

Hoje, porém, teria tudo para ser um dia diferente. Tinha grandes esperanças que minha liberdade estaria muito próxima. Pedi uma audiência com o diretor do presídio para que eu pudesse saber o saldo de pena que eu ainda teria a cumprir.

Quando fui abandonado aqui pouco soube sobre minha condenação. Eu estava tão mais preocupado em combater a injustiça do fato que me fez ser preso do que com a condenação propriamente dita.

Pois a desolação tomou conta do meu ser quando adentrei àquela sala. A última esperança que eu nutria em meu coração foi abruptamente extirpada num piscar d’olhos.

Dizia o diretor que, apesar de eu ter um comportamento até certo ponto razoável, nada poderia fazer por mim, uma vez que minha condenação era perpétua e seria mais prudente que eu arranjasse uma forma de conviver com aquela realidade (a qual eu deveria estar acostumado há mais de trinta anos).

Não há esperança que sobreviva, não há amor que ajude, não há fé que ampare.

Eu apenas quis morrer naquele momento. Juro que procurei a morte nos dias seguinte àquela notícia, mas ela parecia me evitar de alguma forma.

 Um dia, no escuro de minha cela vazia, coloquei-me a refletir e, de súbito entendi que o melhor seria aceitar a condenação imposta a mim, mesmo que, no fundo eu ainda considere ser algo totalmente desmedido, não há muito que fazer em relação a isso.

Resolvi, então, escrever sobre ela.

Você, caro leitor, que pensou se tratar de uma prisão, com carcereiros e criminosos de todas as espécies, fico feliz que tenha pensado isso! Considere-se um privilegiado.

Já para você que, desde as primeiras linhas constatou que a “prisão” aqui descrita, na verdade, trata-se da mente de um portador de depressão só lhe digo uma coisa: “estamos juntos!”.

Sempre adotei tal metáfora do cárcere. Na verdade é assim que eu me sinto: eterno prisioneiro de uma mente atormentada pela tristeza e desolação constantes. Pensamentos ruins fazem companhia e muitas facadas e espancamentos são dirigidos a mim ao longo dos dias.

Recentemente tive a triste notícia de que tal condenação não terá um final.

Quem sabe uma liberdade condicional um dia? Ninguém pode saber. Essa parte, na verdade, depende muito de mim. Tenho feito meu melhor para conseguir ver o sol novamente e respirar o doce aroma da liberdade.

Por enquanto estou por aqui, dentro das celas da minha fria, escura e suja cela, escrevendo essas linhas como forma de aliviar um pouco o peso de quase 35 anos nessa prisão desleal e injusta.

Não posso esperar outra coisa de mim que não seja isso.

Mas o sonho permanece vivo e, tão logo se concretize (o restante da fé que me sobrou é direcionada a esse ideal) eu volto aqui para contar a vocês qual a sensação de estar livre.  

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

"CARPE DIEM"


Durante algum tempo, coisa de uns dois anos, eu venho escrevendo alguns textos, uns ficcionais, outros dando pistas sobre meu estado emocional e psicológico.

Algumas vezes uso pseudônimo, outras não.

Decidi deixar o politicamente correto e falar abertamente sobre como venho me sentindo.

Pois bem, tenho pensado na morte como nunca pensei. Varias vezes ao dia, todos os dias. Na verdade esse é o único pensamento que me acalma em meio às incontáveis crises de depressão que venho tendo, sistematicamente.

Não é uma coisa boa de se ler, falar ou sentir. Sei muito bem disso. Mas não consigo controlar, é mais forte do que minhas forças podem suportar. Penso em formas, momentos e situações em que eu possa, de uma vez por todas, abandonar esse mundo que tem me representado um sofrimento angustiante nos últimos dias.

Muitos podem perguntar: “qual a razão disso tudo? Por que isso agora? Você é um cara tão alegre e brincalhão, tem de tudo nessa vida!”

Gente, se eu soubesse a resposta não precisaria me sentir tão mal assim. Não faria sentido algum!

Mas eu apenas sinto e não sei explicar a razão.

Por mais que a vontade de morrer seja algo que não passará do campo das minhas ideias, evidentemente, não consigo apenas abandonar o calmo sentimento que uma hipotética partida me proporciona.

Às vezes eu me tranquilizo sabendo que posso dar fim a isso tudo e, enfim, abandonar esse mundo cheio de loucuras e sofrimento.

“Exagero” vocês dizem, mas não consigo pensar assim. Só quem sente algo parecido e acaba por se encontrar sem saídas sabe a extensão dos danos ocasionados ao coração e à mente.

Ainda que eu pense muito nisso tudo, continuarei por aqui. Fiquem tranquilos quanto a isso.

Mas, antes que comecem a divagar a respeito de meus sentimentos, quero lhes passar uma pequena mensagem.

Já pararam para pensar que, nesse exato momento pessoas se conhecem, pessoas estão se separando, pessoas estão se magoando e vidas estão começando? Na mesma proporção, vidas estão acabando, pessoas partindo e corações sendo despedaçados.

Tudo é uma questão de momento.

Meus dias tem sido terríveis, pois convivo com um eterno inimigo dentro da minha cabeça. Um inimigo que, por mais que eu tente enfrentar, tem conseguido vencer algumas batalhas. Mas estou tentando resistir da forma mais corajosa possível, muito embora os dias em que quero hastear a bandeira branca e me entregar venham sendo mais frequentes.

Ter depressão é andar com um demônio sobre o ombro lhe dizendo coisas horríveis e lhe oferecendo armas que você, não fundo sabe que não quer ou não precisa usar.

Em meio a todo esse ambiente hostil, a mensagem que eu deixo é: aproveite cada momento do seu dia. Principalmente aqueles em que você não tem pensamentos como os que relatei aqui. Que não se desanime. A vida pode mudar em poucos segundos.

Portanto, aproveite aquele momento bom que você está passando, ainda que seja um mero segundo, um por do sol, o sorriso de uma criança, seu prato preferido, sua musica favorita, aquele filme que, há tempos você queria assistir, aquela pessoa que você não via fazia tempo.

A vida é feita de momentos. A frase é batida, eu sei, mas bem significativa.

Muitos já estão cansados de saber que é preciso “aproveitar o dia”, ou como dizia a celebre frase do filme: “carpe diem”.

Então meus amigos, apeguem-se aos pequenos momentos de prazer que a vida proporciona. Talvez a chave da sobrevivência esteja nessa formula tão simples e de pouco custo.

Lembrem-se, em um minuto tudo mudou e aquele momento vira passado. E o passado é um palito de fósforo queimado que jamais recobrará sua forma e nunca mais terá utilidade.