terça-feira, 30 de dezembro de 2014


“Os olhos não traem”
 
 
Sou contra o uso clichês, seja no começo, no meio ou para encerrar meus textos. Acredito que uma ideia boa pode ficar ofuscada pela utilização de algo às vezes tão simples.
Mas não dessa vez.
Por muito tempo eu neguei o que todos diziam, ou seja, que “os olhos são a janela da alma”.
Todos esses anos convivendo com uma doença que consegue corroer os sentidos e acabar com a sanidade aos poucos fez perceber o quanto os olhos revelam do interior da pessoa.
Eu explico!
Certo dia decidi começar uma pesquisa de campo, por conta própria e sem nenhum fundamento lucrativo ou científico, apenas por curiosidade, pois peguei-me pensando que, assim como uma seita secreta os deprimidos se reconhecem pelo olhar.
Para tanto, esperei um dia em que estivesse em total estado de desolação (os quais eram até comuns) e saí às ruas. Reparei que algumas pessoas me encaravam, algumas com certa piedade, outras com desprezo e algumas outras com solidariedade.
Essas últimas chamaram minha atenção.
Tentei traçar um padrão entre os olhares e percebi que as características se repetiam. O olhar do deprimido acompanha seu andar até certo ponto. Quando se sente ameaçado é desviado. Mas, quando percebe que se deparou com alguém que sofre a mesma dor o olhar muda. Parece que algum tipo de alegria aponta naqueles olhos, como quem tenta dizer: “que bom que não estou sozinho. Você também não está!”.
Porém, por mais que seja uma constatação, isso é muito triste e conseguiu me deixar bem triste também.
Durante algum tempo fiquei dominado por essas constatações, tentando descobrir pelo olhar quem também sentia uma tristeza interna quase invencível. Isso me fez muito mal, pois percebi que muita gente se sentia assim, o que não era justo.
Como, em um mundo tão grande e cheio de maravilhas, as pessoas conseguem se sentir tão tristes?
O que mais me chamava a atenção era a divisão daqueles rostos em duas partes: o sorriso, que dizia uma coisa e o olhar, que dizia outra, geralmente a verdade.
Recordei-me de quantas vezes eu sorri e fiz os outros sorrirem, tentando dizer com meu olhar que tudo o que eu desejava era sumir daquele lugar, ter um pouco de paz, ficar sozinho.
Por mais que tenhamos a boa vontade de manter o sorriso, os olhos não mentem. Os olhos não traem.
Descobri a importância do olhar. É possível saber a vida de uma pessoa apenas olhando em seus olhos e, tenha certeza meu caro amigo leitor que, caso você aprenda a descobrir essa peculiaridade, terás um amigo para o resto da vida.
Ainda que estejamos aparentemente bem, os olhos insistirão em dizer o contrário e não é por mal. Eles tem vida própria, não conseguimos controlar essa autonomia que eles fazem questão de dizer que tem.
Já pedi socorro com os olhos, mas sem saber que nem todos poderiam enxergar minha alma como eu conseguia enxergar a dos outros.
Esse é um dom maldito que só os deprimidos tem: enxergar a tristeza oculta no olhar do outro.
Eu trocaria esse dom por qualquer outro, de verdade. Até pelos mais fúteis. Na verdade eu trocaria meu cérebro pelo mais fútil dos cérebros, se houvesse a garantia de que ele viria sem esse “defeito infernal” que me acompanha há 34 anos.
 
Porém aprendi a tirar um lado bom (se é que é possível) disso tudo: tento ajudar na medida do possível, utilizando esse dom desgraçado que me foi conferido. Tento ouvir, compreender, aconselhar.
 
Tenham certeza que minha vida se tornou muito menos indesejável depois que aprendi a ajudar.

sábado, 6 de dezembro de 2014

“Para sempre Ana”
(continuação de “Essa não é mais uma estória de amor") 


“Durante esses anos viajando, de todas as belezas de todos os países e lugares que tive a oportunidade de visitar, os olhos de Ana foram as únicas coisas inesquecíveis. O único lugar que gostaria de visitar um dia. Sabe aquele lugar mágico que todos temos? Uma casa na praia, um campo verdejante, a residência de um parente. Todos temos um lugar mágico que, mesmo não sendo possível fisicamente, nosso coração sempre dá um jeito de visitar. Meu lugar mágico são os olhos de Ana. Ainda que eu não possa tê-los, meu coração sempre vai até o encontro deles.”
E assim começava o livro de Pedro. A estória que o fez andar o mundo todo agora tinha um tema: “Ana”.
Após o retorno ao país, Pedro, que já havia gastado todas as reservas da viagem, decidiu que escreveria sobre Ana, pois havia descoberto que a estória perfeita tinha sido descoberta no final da viagem, no último dia, “aos 45 do segundo tempo”.
Porém, como todo ser humano vivendo numa metrópole como São Paulo, viver demanda gastos elevados e ele já não tinha o emprego de quando decidiu viajar. Era preciso trabalhar.
Ao deixar o país em busca de seu sonho, Pedro abandonou o emprego de executivo numa grande empresa, pondo-se no mundo atrás de fatos e pessoas que lhe rendessem um livro memorável.
Evidentemente o emprego não o esperaria no Brasil e ele sabia muito bem que não poderia ficar sem trabalhar, afinal, as contas não se pagam sozinhas, como seu pai sempre dizia. Mas voltara com uma cabeça diferente e mais aberta da viagem. Era um homem mais simples e com olhos para as coisas mais triviais da vida, que antes não conseguia enxergar.
Após muita procura conseguiu um emprego como atendente numa loja de eletrônicos. Não era o emprego de sua vida, ganhava cerca de vinte vezes menos, mas pagaria as contas. Não reclamava disso. Em sua cabeça, o pedido de demissão da grande empresa em que trabalhava possibilitou que ele conhecesse seu “lugar mágico”.
Pensava em Ana todos os dias. Não era normal aquilo.
Não tiveram tempo de se apaixonar e a moça ainda deixou bem claro que sua vida era complicada o suficiente para que isso acontecesse, ainda que em um futuro remoto. Mas no fundo ele não pensava em outra coisa. Sabia, também, que se deixasse seu desejo aflorar, perderia Ana para sempre e isso não poderia sequer ser cogitado.
Porém, Ana e Pedro se correspondiam com uma frequência avassaladora. Falavam-se todos os dias, conforme haviam prometido durante o encontro na Europa.
Em segredo, Pedro juntava dinheiro para se mudar para a Itália. Além do trabalho como vendedor de eletrônicos, ainda desdobrava-se com aulas particulares de italiano, o que lhe rendia um dinheiro extra. Decidiu que se mudaria para a Itália sem falar com Ana e talvez nunca contaria, ainda que lá estivesse. Mas talvez essa saudade avassaladora que sentia pudesse ser um pouco aliviada pelo simples fato de estar mas próximo dela. Porém, sabia que não poderia e nem deveria tentar se aproximar de Ana. Não tinha esse direito.
Mas, por mais que ele não quisesse pensar nisso, Ana apresentava um olhar triste nos últimos dias, o que era denunciado pelas conversas que tinha via Skype. O brilho dos seus olhos parecia desaparecer e a moça aparentava ter uma nuvem pairando sobre sua cabeça, como uma dúvida desleal que a abatia.
Ela respondia às indagações de Pedro sobre isso com um: “Estou cansada, só isso”, o que causou uma enorme preocupação mas ele não queria ser “o chato” que insistiria em perguntar algo que a moça não queria conversar. Mas insistiria de forma sutil até que ela se abrisse.
Percebeu um abatimento maior no rosto de Ana, parecia uma flor que murchava com o tempo. Aquilo o entristecia. Ana apresentava um discurso que parecia dar a entender um descontentamento com alguma situação que Pedro não entendia bem.
Os dias foram passando e Ana parecia mais triste.
Até que Pedro não resistiu e indagou:
- Tenho percebido uma certa tristeza em você nos últimos tempos? O que está acontecendo?
Ana deixou cair uma lágrima e respondeu apenas:
- Talvez a situação seja muito difícil para que você consiga aceitar ou entender. Talvez seja apenas uma coisa minha com o que terei que aprender a lidar sozinha. Não que eu não confie em você, não é isso! Mas você está envolvido nisso também e eu não quero te machucar. Enfim... falei demais.
Pedro então, atônito, resolveu indagar com certa veemência:
- Bom, se eu estou envolvido nada mais justo que eu saiba o que está acontecendo! Agora eu faço questão que você me diga. Eu falei alguma coisa errada? Fiz alguma coisa errada? Deixei de fazer alguma coisa.
Ana, nesse momento desviou o olhar (estavam conversando pelo Skype) e respirou fundo fechando os olhos demonstrando uma certa preocupação como quem diz: “meu Deus, ele quer mesmo saber...”. Olhou para a tela do computador, baixou os olhos e, levantando a cabeça novamente, encarou Pedro nos olhos e começou a falar:
- Olha Pedro, você sabe que eu tenho uma família maravilhosa, que eu amo e jamais faria algo que os magoasse. Mas aí, aparece você na minha vida, despretensioso e desastrado, atencioso e acolhedor, sendo simplesmente a pessoa que sempre sonhei ter do meu lado. Eu não sei o que fazer, não quero te magoar, mas também não consigo lidar com esse sentimento. Eu estou apaixonada por você e isso vem me consumindo pois nunca senti isso antes e não acho justo que eu sinta isso, pois existem muitas pessoas envolvidas que eu amo muito, inclusive você. Não quero te perder mas também não quero ter esse sentimento no peito.
Pedro deixou escapar um sorriso nesse momento e interrompeu Ana, que esboçava dizer alguma coisa:
- E se eu disser que sinto o mesmo? Que até agora não te disse nada por conta da promessa que te fiz de nunca sair do seu lado e ser seu amigo para sempre? Penso em você todos os dias, do momento que acordo ao momento em que me deito. Te vejo nas pequenas coisas do meu dia, desde uma música que ouço até o temporal que cai no final da tarde. Eu estou mais envolvido nisso do que você pensa e não é de hoje. Mas não disse nada porque senti que poderia perder você.
Percebeu então que os olhos de Ana mudaram naquele momento e ele pode ver que por um instante eles pareciam sorrir.
- Por um lado é muito bom saber disso. – disse Ana. Mas por outro é muito complicado, pois eu temo machucar alguém que amo tanto. Sim, eu te amo. Mas não posso te dar o amor que eu quero, não nesse momento. Mas sei também que você não merece esperar por mim, pois eu não sei se terei a resposta que você quer ouvir. E se eu tiver, quanto tempo levarei para isso. Eu quero te ver feliz meu amor, sempre. Você não merece esperar por mim, muito embora eu saiba que a noticia de que você tem alguém destruiria meu coração, por um lado. Por outro eu ficaria feliz em saber que você está bem. Mas eu te amo demais e não sei lidar com esse sentimento.
Pedro parou por um instante. Não sabia o que dizer. Procurou as melhores palavras e disse apenas:
- Eu te espero... O tempo que for preciso. Dias... meses... anos... o tempo que você precisar!
Ana parecia temer essa resposta e fechou os olhos deixando cair uma lágrima, dizendo:
- Não desista de mim meu amor, por favor! Por mais que eu não possa dar o sentimento que nós dois merecemos, tenho medo de te magoar demais. Minha mente está em conflito. Ao mesmo tempo que eu gostaria que você seguisse a sua vida, eu não quero que desista de mim... preciso ir, estou muito confusa, desculpe.
Ficaram se olhando por um tempo e desconectaram.
Pedro ficou esperançoso com aquela conversa pois sabia que Ana era o que ele mais queria e que se fosse para ficarem juntos, ele esperaria o tempo que fosse pois sentia por ela algo muito maior do que “esse tal de amor que os mortais tanto falam”.
Os dias se passaram e Ana parecia meio distante, sempre ocupada. Pedro imaginou que a moça estava fugindo dele. Tentou contato de todas as maneiras possíveis até decidir que deixaria Ana ter o tempo que ela quisesse, por mais que sentisse saudade.
Algum tempo depois, por seu perfil no Facebook pode perceber que ela esteva adoentada e foi internada por alguns dias, o que fez com que ele tentasse por todas as formas contato, sem sucesso.
Não conseguia trabalhar direito e a vontade era sair correndo de onde estava e ir até a Itália atrás de noticias da moça. Porém, sabia que não poderia fazer aquilo, poia Ana tinha sua família e ele, em algum momento, sentiu-se um intruso. Estava desesperado até que recebeu uma mensagem no celular:
“Oi meu amor, desculpe o sumiço. Estive adoentada esses dias. Quer tomar um café comigo?”
Pedro não notou nada de estranho, pois eles sempre se falavam dessa forma: “quer tomar um café comigo” foi uma das primeiras coisas que disseram na Itália quando se conheceram e essa era a senha para começarem a conversar. Respirou aliviado e quando começou a digitar recebeu outra mensagem:
“olhe para o fundo da loja”
Lá estava ela, radiante. Sorrindo e emanando um brilho jamais visto naqueles olhos azuis que mais pareciam o mais azul dos mares iluminado pelo sol do caribe. Pedro, sem muito pensar, pulou o balcão onde estava e correu para abraça-la. Os dois ficaram presos naquele momento por quase uma hora, até decidirem ir realmente tomar um café.
Pedro a olhou por um instante. Estava abatida, talvez pela viagem ou pela indisposição que tivera na Itália. A moça então começou a falar:
- Você deve estar achando estranho eu aparecer do nada aqui no Brasil, não é? Bom, eu decidi que visitaria alguns parentes (todos na verdade) e por último, queria te ver...
Nesse momento Ana fez uma longa pausa e seus olhos azuis brilharam e ela prosseguiu:
- Não vou entrar muito em detalhes técnicos pois acho desnecessário, mas a consequência do meu problema de saúde é que tenho apenas mais 48 horas de vida. Recebi anteontem o diagnóstico e saí direto do hospital com destino ao Brasil. Na verdade eu tenho mais oito horas só e queria que essas oito horas fossem passadas do seu lado. Sei que é difícil eu te pedir isso, mas eu quero que a ultima imagem que eu tenha dessa vida seja seu rosto e a ultima sensação seja seu abraço...
Pedro ficou atordoado, demais. Não sabia se chorava, se perguntava se tudo aquilo não passava de uma brincadeira de mal gosto. Mas ficou apenas paralisado. Olhou a moça e começou a falar:
- Eu poderia perguntar milhares de coisas nesse momento: por que eu? Por que morrer? Por que Deus faria isso com a gente? Mas acredito que nosso tempo seja curto para perguntas sem respostas. Eu quero te levar num lugar onde você poderá passar esse tempo do meu lado vendo a cidade que te esperou por todos esses anos.
E os dois saíram. Ela segurando o braço dele e sentindo por fim o carinho do homem que amava. Ele, deixando-se entregar àquele breve sentimento que, dentro de horas seria extirpado de forma brutal pela finitude humana. Chegaram, então, a um mirante onde podiam ver toda a cidade. Sentaram e ela adentrou no abraço de Pedro. Olharam-se nos olhos e deram um longo beijo, com gosto de primeiro e último. Apaixonado, regado a suspiros e juras telepáticas de amor eterno.
Depois olhando o por do sol, Pedro, convencido de que aquele era seu “lugar mágico”, ao lado de Ana, começou a cantar baixinho no ouvido dela:
“E nossa estória não estará pelo avesso assim sem final feliz... teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer. Não olhe pra trás, apenas começamos. O mundo começa agora. Apenas começamos”      
Encerro por aqui a narrativa do que começou com a promessa de não se apaixonar. Ana morreu? Pedro morreu junto com ela? Pedro escreveu seu livro?
Jamais saberemos.
Pois a morte, nesse caso é apenas uma questão secundária. O amor que prometeram não ter um pelo outro e que acabaram descobrindo não morreu e jamais morrerá.
Na verdade o que mantém viva a estória desses dois é exatamente esse amor proibido que, em certo momento da vida se tornou possível e se prolongou pela eternidade.
Se existirem outras vidas, em todas Pedro caminhará atrás da alma de Ana, pois a ligação que os dois tiveram transcende a existência terrena.
Não é hora de escrever “fim”. Pois como dito, essa estória não acaba, não tem fim. O amor que Pedro sentiu, sente e sentirá por Ana durará para sempre.