sexta-feira, 5 de maio de 2017



O ADEUS DE FERNANDA





Meu nome é Fernanda e eu contarei para vocês como foi o dia em que eu resolvi tirar a minha vida.

Em principio não era uma decisão que eu queria tomar. Porém, eu vivi sob a sombra de uma lamentável realidade. Desde muito pequena eu fui abusada pelo meu próprio pai. Procurei ajuda no colo de quem eu pensava que me acolheria e protegeria – a pessoa mais indicada, inclusive.

No entanto, ela preferiu ficar do lado daquele que roubou minha infância e que fez com que, muitas vezes, eu me sentisse culpada por todos os anos de abuso que eu sofri.

Minha própria mãe não acreditou em mim. Eu pensava “como minha própria mãe pode não acreditar no que eu digo?” Ela não acreditava e eu não vi alternativa, a não ser sair de casa. Levei comigo uma mala cheia de magoas e sentimentos ruins. Mas eu precisava sumir daquele lugar.

Fui acolhida por minha avó, que deu a proteção que me foi negligenciada, desde que eu era muito pequena, pelo meu seio familiar imediato.

Às noites eu acordava e sentia aquelas mãos nojentas tocando meu corpo. Eu era só uma criança. Eu sentia medo, culpa, solidão e tristeza.

Aliás, a tristeza passou a ser minha principal companheira daquele momento em diante.

Nessa época eu percebi que estava com depressão.

Procurei uma razão plausível para a tristeza e meus amigos diziam que eu tinha um motivo razoável para me sentir triste. Mas não era só isso.

Às vezes a tristeza vinha do nada, sem nenhuma lembrança ou alguma correspondência com o que eu havia passado naqueles anos de terror. Eu apenas me sentia triste e procurava meus amigos para conversar e tentar entender se aquele sentimento era comum, ou se eu estava realmente precisando de ajuda.

Esse é o ponto mais difícil da depressão. As pessoas não gostam de falar sobre isso. É difícil, distante e vergonhoso.

Nessa hora a gente percebe que, quando Nietsche disse: “quando a gente olha demais para o abismo, o abismo olha de volta pra gente”.

Então, comecei a pensar em suicídio. Incessantemente. Todos os dias. Era o único pensamento que me trazia um pouco de tranquilidade. Por um fim à minha vida era só o que eu queria fazer e a mera cogitação já me deixava em paz.

Mas eu pensei que não era o melhor a fazer e, do meu jeito, fui resistindo. Calada, sem falar com ninguém, mantive-me em pé e segui a vida, como uma adolescente qualquer (ou quase).

Eu descobri a internet. Seus benefícios e malefícios. Tentei usa-la da melhor forma possível, para distração, um passatempo. Criei um fã clube e fiz novos amigos a partir daí.

Mas aquele sentimento voltava com os dias e, dessa vez era nítido demais. Não era só tristeza. Eu me lembrava dos anos de abuso a que fui submetida e a melancolia vinha agora acompanhada por um pânico violento que me paralisava, toda vez que eu pensava naquele homem, tirando de mim toda a vida que eu tinha pela frente.

Minha depressão estava voltando com força e eu resolvi procurar, mais uma vez, a ajuda de pessoas com as quais eu pensei que poderia contar. Minha melhor amiga deu as costas para mim da forma mais desprezível possível. Disse a ela “Amiga, socorro. Acho que minha depressão esta voltando”. A resposta dela foi: “Fernanda, para de fazer drama”.

No fim, toda minha dor e toda a ajuda que eu sempre pedi, resumiu-se apenas em “drama”.

“Eu não posso mais. Não consigo mais. Não vejo mais sentido.” Disse a mim mesma.

Naquele mesmo dia eu expus meus anos de terror, abuso e agressão. Expus minha tristeza e minha depressão e a dificuldade que era lidar com esses dois fatores (abuso e doença). Disse aos meus “amigos” que não aguentava mais lidar com aquele sentimento e que a solidão tinha tomado conta de mim. Encerrei com um singelo “adeus”.

Foi minha ultima palavra. Minha ultima postagem. Parti no mesmo dia. Deixei esse mundo de indiferença e desprezo, que comigo foi tão indiferente e me tratou com tanto desprezo.

Porém, naquele mesmo dia, onde eu estava – não sei explicar como - conseguia ver a reação dos meus amigos: alguns não acreditavam. Outros clamavam por eu dizer que era mentira. Outros diziam que eu precisava de Deus.

Deus? Pobres coitados.

Deus não tem nada a ver com depressão. Onde eu estou agora, do meu lado, está a alma de uma freira que, igualmente, não aguentou suportar as dores que a doença lhe impunha.

Deus não tem nada com isso.

Andando por aqui eu vejo que muitas pessoas, de diversas crenças, e condições sociais sucumbiram à depressão. Muitas delas partiram como eu. Sozinhas e acusadas de “drama”.

Não era possível viver desse jeito. Eu parti, pois qualquer solidão não é pior do que aquela que vem após um pedido de ajuda ser negado. No meu caso a ajuda foi negada minha vida inteira. Não havia mais sentido e esperança para mim.

Sigo solitária, uma alma perdida e abandonada, porém, em outro plano.

Adeus, para sempre.





“Esse texto foi baseado na historia de uma menina que recentemente relatou no twitter os abusos que vinham sendo cometidos pelo pai ao longo de sua infância. “Fernanda” (como a chamei aqui), procurou ajuda da família e dos amigos. “Fernanda” sentiu-se sozinha, com medo, com frio e abandonada. Foi desprezada por aqueles que tiveram a oportunidade de fazer alguma coisa por ela. Não espere que as “Fernandas” que você conhece cheguem a esse extremo. Ajude sua “Fernanda”. Ouça, apoie, acompanhe. Entenda que a depressão – muito embora algumas vezes tenha algum gatilho – não precisa de nenhum motivo para aparecer no meio do dia enquanto você se gabava por ter acordado bem e disposto. Mostre que por pior que a vida seja, ela pode ficar suportável com apoio e que nenhum mal é grande o suficiente que não pode ser suportado, após muito trabalho e carinho. Ajudem. Ouçam. Apoiem. Amanhã pode ser tarde demais para isso e o arrependimento é o pior sentimento que um ser humano pode sentir. A “Fernanda” do texto efetivamente cometeu suicídio. As postagens existem e lê-las foi uma das piores sensações que eu já experimentei na minha vida. Senti a tristeza de “Fernanda” e, de posse dessa dor, resolvi escrever esse texto. Que sua alma alcance o descanso que você sempre procurou por aqui “Fernanda”.