“ANTES
DO FIM”
CAPÍTULO
II
Passava
das onze da manhã. O dia estava chuvoso e Jonas deitado em seu leito olhava
para as gotas de chuva que batiam na janela do seu quarto.
Sua
cabeça doía muito. Formou-se um silêncio sepulcral naquele recinto. Ângelo empunhava
sua caneta esperando que Jonas começasse a falar sobre os dias que gostaria de
mudar na sua vida.
Mas
o rapaz parecia profundamente triste e de certa forma relutante em começar a
falar. Por isso Ângelo resolveu sair da sala e deixar Jonas sozinho por alguns
instantes para que pudesse entrar em contato com seu passado e ajustar as
contas com ele, antes que a morte o levasse.
Jonas
olhou mais uma vez pela janela e se lembrou de quando era apenas um garoto, de
cerca de onze anos. Aquela chuva o fazia lembrar de um dos momentos mais
tristes de sua infância e que seria o primeiro que mudaria.
A
janela lembrava a que ficava no quarto de seus pais, onde o rapaz passava a
maior parte do seu tempo olhando a rua, acompanhando as pessoas que ali
passavam, apressadas e sem perceber aqueles pequenos olhos atenciosos
acompanhando seus passos.
Gostava
de parecer invisível na maior parte das vezes. Achava que tendo esse poder,
seria capaz de conhecer as pessoas em sua essência sem que com elas
interagisse. Era bastante observador e chegava a imitar os movimentos que
presenciava.
Em
frente ao hospital um colégio funcionava a todo gás. Era momento de saída dos
alunos e Jonas captou uma mãe que esperava seu filho sair. Estava de guarda
chuva. Não demorou muito até que o garoto aparecesse e pulasse no colo daquela
jovem mãe, abrigando-se debaixo do guarda chuva.
Por
um instante o choro veio até a garganta. Mas ele se conteve. Sabia que
precisaria começar a desabafar o quanto antes com Ângelo e que as lagrimas
poderiam prejudicá-lo nesse momento.
Precisava
manter as emoções controladas para que pudesse ser o mais sincero possível,
afinal, restava-lhe pouco tempo.
-
Podemos? – disse Ângelo sentando-se ao lado do leito.
Jonas
olhou o psicólogo e voltou a se deitar.
-
Engraçado – disse ele – eu acabei de presenciar uma cena que fez eu me lembrar
do primeiro dia que gostaria de mudar na minha vida. Minha família sempre foi
muito humilde e nós sempre cuidamos um do outro. Mas nem todos tiveram esse
pensamento a vida toda.
Ângelo
nesse momento passou a anotar as palavras que Jonas dizia acompanhando suas
reações. Prosseguiu:
-
Eu me recordo de um dia chuvoso como o de hoje. Eu devia estar na terceira
série do primário, não me recordo ao certo. Era hora da saída e eu procurei me
abrigar com os amigos embaixo de uma marquise na porta da escola, sem perceber
que minha mãe me aguardava do lado de fora com um guarda chuva, o que me causou
um desconforto imenso, pois eu não queria ser o “cara que a mamãe vai buscar na
escola”. Naquela época era comum voltarmos sozinhos para casa, mas estava
chovendo demais e minha mãe se dispôs a enfrentar aquela tempestade para buscar
o filho. Eu senti vergonha. Quando ela veio em minha direção eu fingi que não a
conhecia e continuei conversando com meus amigos, que dividiram o guarda chuva
comigo. O que mais me choca até hoje e que naquele momento não representou
muita coisa foi o fato de minha mãe ter cedido seu abrigo para que nem eu nem meus
amigos nos molhássemos. A cada tentativa em pegar minha mão eu me esquivava.
Olhei em seu rosto e, em meio aos pingos de chuva que caiam em seu rosto eu
pude perceber uma lágrima caindo. Aquela lágrima que sai cortando o olhar, como
se viesse diretamente de um reservatório de decepção. Ela estava triste com
minha ação. Eu a ignorei, tive vergonha dela. Ao chegar em casa ela chorou
copiosamente e eu não tinha a menor noção do que teria acontecido, muito menos
que tal fato teria se desencadeado por minha causa. Algum tempo depois, um
pouco mais maduro eu descobri o motivo. Ninguém sabe que a culpa que eu carrego
teve inicio nesse episódio. Minha mãe sempre se desdobrou para que tivéssemos o
melhor, sempre cuidou da gente. Porém, na primeira oportunidade eu a “presenteio”
com uma cena dessas. Os anos foram se passando e a cada novo carinho que ela me
fazia, cada novo ato de bondade, cada “eu te amo” que ela dizia eu sentia uma
punhalada enorme no meu coração. Eu nunca me perdoei pelo que aconteceu e
dificilmente conseguirei me perdoar, mas gostaria de poder mudar esse dia. Com
toda a força do meu coração, eu queria poder voltar naquele dia chuvoso e pular
no colo dela quando a visse na porta da escola e dizer que a amava na frente de
todos. Eu sei que no fundo isso é uma coisa que também a deixa magoada até
hoje, mas o coração daquela mulher é tão grande que ela não deixa que isso a
sufoque. Mas eu sei que ela não esqueceu.
E
Jonas chorou. Copiosamente.
As
lágrimas que caíam de seu rosto eram tão pesadas que pareciam furar o chão.
Afinal de contas, aquele segredo permaneceu intocado por mais de 25 anos. A
culpa também veio junto com o pranto. As lágrimas pareciam uivar como lobos ao
saírem de seus olhos, carregadas com o mais negro dos sentimentos: a mágoa de
si próprio. Experimentar o imperdoável lhe deixou naquela situação. Era como se
um demônio se revelasse dentro dele mas insistisse em gritar “essa alma é minha
e ninguém será capaz de me tirar daqui”.
Ângelo,
porém, deixou que aqueles anos de culpa deslizassem no fluxo daquelas lágrimas.
Depois ousou falar.
-
Eu não posso simplesmente arrancar essa culpa de você. Eu até acho que você
deva expiá-la, se é algo que te incomodou por tanto tempo assim. Mas algo
precisa ser dito. O que aconteceu não quer dizer que você não tenha amado sua mãe.
Não é nada disso. Esse episódio apenas revelou uma necessidade momentânea de se
sentir incluído. Você sempre foi uma pessoa introspectiva e aquele fato
ameaçava a única chance de um momento de libertação, ainda que pequeno. Óbvio
que ela deva ter ficado decepcionada, pois não esperava essa atitude. Mas se
esse é o momento em que você deve expiar sua culpa, faça-o, mas prepare-se para
tentar abandonar esse sentimento. Depende mais de você do que da medicina, da
psicologia, enfim. Você deve entender que foi um episódio isolado e que – sim –
você poderia ter agido de forma diferente, mas não o fez. O que resta fazer? Superar.
Você ama muito sua mãe e a maior prova disso é esse fardo que você insistiu em
carregar sozinho por longos anos. Não confunda isso. É comum os jovens quererem
uma certa autonomia nas relações, sem a interferência dos pais. Você queria mesmo
que esse dia fosse diferente? Descreva-o para mim.
-
Eu a abraçaria – disse Jonas – e a beijaria como se fosse o último dia da minha
vida. Jamais a deixaria na chuva, enquanto eu me abrigava. Faria tudo por ela
naquele momento. Faria as graças que sempre fiz enquanto pequeno para que o
caminho até nossa casa fosse o mais ameno possível, debaixo daquele temporal.
Eu diria que a amava. Mas não posso fazer isso...
-
Por que não? – disse Ângelo – A partir de agora essa é sua nova realidade.
Aquele dia deixou de existir. Você vai condicionar seus pensamentos e
direcioná-los a abandonar esse fardo, desenhando o modelo de dia chuvoso
perfeito que você acabou de me descrever. É isso que você deve levar consigo.
Os melhores momentos da sua vida, ainda que apenas na sua imaginação tenham
acontecido. Liberte-se dessa prisão!
Jonas
sentiu-se leve ao imaginar o sorriso orgulhoso de sua mãe ao discutir com ele
as matérias dadas em aula até o portão de casa. Sentar e tomar um chocolate
quente, explicando os fatos históricos relevantes que viu em aula.
E
sorriu. Pela primeira vez em anos sorriu ao lembrar-se daquele dia. Era como se
uma imensa e carregada nuvem tivesse sido removida de cima dele e o sol
passasse a reinar após aquele temporal.
Curiosamente,
ao olhar pela janela notou que havia parado de chover e o sol brilhava, faceiro
entre as nuvens. O cheiro de asfalto molhado invadia o recinto. Aquele demônio
aprisionado parecia ter sido domado. Ele ainda existia, mas não dominava tanto
a alma de Jonas.
Ainda
olhando para fora, vendo o sol, disse algo que nunca teve a oportunidade: “eu
te amo mãe”.
CONTINUA
NO CAPÍTULO III