“ANTES
DO FIM”
CAPÍTULO
- I
Desconhecemos
totalmente os perigos da imersão na própria solidão. Podemos invadir um território
extremamente hostil que oferece inúmeros caminhos sem volta, tristes, escuros e
perigosos.
Jonas
experimentou essa sensação.
Em
um dia qualquer de sua vida acordou numa cama de hospital, rodeado de
aparelhos, com acessos nos braços e uma dor lancinante na cabeça.
Sem
saber o que acontecia, notou a presença de duas mulheres (pelas roupas brancas
concluiu que se tratavam de duas enfermeiras) que faziam algumas anotações e
checavam seus sinais vitais, pressão arterial e temperatura. Ainda com a visão
turva, esboçou uma pergunta mas percebeu que lhe faltavam forças para
continuar.
No
mesmo instante uma indagação veio em sua mente: “como eu vim parar aqui?”
Então,
começou a se lembrar dos seus últimos passos, suas ultimas ações e seus últimos
sentimentos.
Jonas
trabalhava em uma agência de publicidade. Tinha 35 anos e Morava sozinho. Do
que se lembra, acordou naquele dia antes mesmo do celular despertar e foi tomar
seu banho matinal.
Após
vestir a roupa, fez um café (ato que repetia todas as manhãs) e se colocou a
pensar na vida. Ligou o rádio, que sempre fazia companhia nos momentos difíceis
de sua vida. Checou as mensagens do celular. Inúmeras. Mas decidira que, naquela
manhã não responderia.
A
exemplo de outros dias estava triste, porém naquele dia essa tristeza parecia
ser mais contundente. Apesar de ter muitos amigos e ser respeitado no meio em
que atuava, sentia-se sozinho. Há anos sofria silenciosamente com a depressão,
quase sempre acompanhada de crises demoníacas de enxaqueca e pesadelos
assombrosos, todas as noites. Não aguentava mais conviver com tudo aquilo.
Era
considerado pelas pessoas como o “ombro amigo”, aquele com quem podiam contar
em qualquer ocasião, seja no meio profissional ou não. Os momentos em que ele
deixava sua casa no meio da madrugada para encontrar um amigo que precisasse de
uma ajuda, uma conversa ou, apenas, uma cerveja não eram tão raros assim.
Mas,
sentia-se sozinho diante de suas próprias limitações e frustrações, que não
eram ouvidas ou conhecidas por quase ninguém. Não tivera sorte com
relacionamentos, os quais na maior parte das vezes tiravam dele o que tinha de
melhor e nunca devolviam. Iam embora como vampiros a procura de sangue novo.
Muitos
dos que passaram por sua vida adotaram uma postura extremamente agressiva,
mesmo sabendo de sua sensibilidade aguçada. Chamaram-no de todo tipo de
monstro, mesmo ele não sendo nada do que falavam. Mentiroso, oportunista, aproveitador.
Isso o atingia como punhaladas no meio do peito, perfurando o coração a
causando um sangramento difícil de curar.
Carregava
culpas do passado, por ações que no seu modo de pensar poderiam ter dado um
destino diferente em sua vida, caso fossem feitas de outra forma. Carregava por
35 anos o peso das culpas antigas e das novas culpas que vinham sendo trazidas
sistematicamente ao seu conhecimento por pessoas que ele amou e que deixaram
sua vida sem nem olhar para trás para enxergar o estrago que haviam feito.
Chorava
sozinho. Ninguém sabia muito a respeito de suas dores e anseios. Apenas sabiam
que ele era alguém para quem poderiam correr em caso de necessidade e que, caso
o magoassem ele não faria nada a respeito.
Era
a “carta de segurança”.
A
depressão e as fortíssimas dores de cabeça o consumiam. Os pesadelos passaram a
ser mais frequentes e os remédios já não o mantinha estabilizado e as crises
passaram a ser frequentes e diárias. Naquele dia mesmo ele acordou ciente de
que seu dia não seria fácil. Ainda no banho sentiu uma forte pontada em sua cabeça,
o que indicava que mais um dia de enxaqueca o aguardava.
Já
com a caneca de café na mão, olhou pela janela e viu as pessoas que passavam
pela rua, apressadas. Por um minuto seus pensamentos deram lugar à reflexão
sobre a musica que tocava no rádio, cujo refrão dizia:
“Como eu posso me
sentir abandonado mesmo quando o mundo me envolve? Como eu posso morder a mão
que alimenta os estranhos ao meu redor? Como eu posso conhecer tantos sem nunca
realmente conhecer alguém? Se eu pareço super-humano Eu tenho sido mal
interpretado” (Misunderstood – Dream Theater)
Sentia-se
exatamente assim: um estranho largado numa multidão, falando uma língua estrangeira,
com hábitos diferentes. Sozinho. Abandonado. Porém, as pessoas o enxergavam de
forma equivocada.
Aquele
cara que aparentava ser o “porto seguro” de todos era, na verdade, a criatura
mais frágil do planeta. Sofria e não era pouco.
Antes
mesmo que terminasse o café, olhou para o fundo da caneca e decidiu tomar a
atitude mais drástica de sua vida: cometeria suicídio ainda naquele dia.
Estava
decidido e ao chegar a essa conclusão chorou copiosamente pensando, ainda, em
tudo o que deixaria para trás.
Mas
não aguentava mais aquela pressão e aquelas dores. Precisava de uma saída
libertadora, precisava fugir daquele lugar que só lhe trazia dor e sofrimento.
Não tinha mais motivos para viver. Seus dias eram tomados por um profundo e
sombrio vazio, o qual era sempre escondido por um sorriso. Ninguém desconfiava,
nem desconfiaria do que havia levado Jonas a tal decisão. Mas ele não conseguia
mais disfarçar. Nem queria.
A
vontade de fugir era mais forte do que procurar uma ajuda que talvez não
chegasse ou, ainda que viesse, não fosse eficiente ou sincera. Estava cansado dos
tratamentos, das máscaras, do choro solitário e das pessoas que o procuravam
como se ele fosse um confessionário disponível 24 horas por dia.
Decidido,
saiu de casa e dirigiu-se até o ponto onde seu ônibus já estava parado. Entrou,
sentou-se e olhou pela janela. A dor de cabeça parecia aumentar para um
formigamento e pulsação constantes, seguidas de fortes pontadas que eram
capazes de fazer suas pálpebras se contraírem.
Olhou
para a rua e viu o vento arrastando algumas folhas. O céu estava claro, sem
nenhuma nuvem. A temperatura daquele outono era agradável. Mesmo com a dor
incômoda ele sorriu e pensou: “de fato hoje é um dia perfeito para morrer”.
Não
se lembrava de mais nada depois disso, só das enfermeiras circulando seu leito
naquele hospital.
Perifericamente,
pode notar que a seu lado estava sentado um homem de meia idade. Não parecia
médico, pois suas roupas eram diferentes das que estamos acostumados a ver em
hospitais. Era de estatura mediana, barba por fazer, já um pouco grisalha. Ajeitava
o óculos enquanto olhava os aparelhos que estavam conectados a Jonas. Usava
roupas simples, uma calça jeans e uma camisa, com as mangas dobradas até o
cotovelo. Virou a cabeça e pode perceber uma prancheta em sua mão esquerda e na
outra uma caneta.
Definitivamente
ele não era médico - pressupôs.
-
O que eu estou fazendo aqui? Quem é o senhor? – disse Jonas ainda com a voz
fraca por conta do período em que ficou desacordado.
O
homem então, sem muitos rodeios disse:
-
Meu nome é Ângelo e, como você pode perceber estamos em um hospital. Eu sou
psicólogo e fui designado para acompanhar seu momento pós operatório. Talvez
você não se recorde mas o resgate o trouxe aqui há dois meses atrás depois de
você ter sofrido uma forte convulsão dentro de um ônibus e ficado inconsciente
depois disso. Após alguns exames foi diagnosticado um tumor de rara incidência
em adultos, no seu cérebro, chamado Ependinoma. Você foi submetido a uma
cirurgia e cá estamos nós.
Jonas
então, assustado resolveu perguntar:
-
Mas por qual razão o hospital mandou um psicólogo conversar comigo? Qual o
propósito disso?
Ângelo,
sem muito titubear respondeu:
-
A equipe médica não conseguiu extrair o tumor e a noticia que tenho a dar
talvez não seja das melhores, mas foi detectada metástase no sistema nervoso
central, ou seja o câncer de espalhou e atingiu um estado irreversível e...
(interrompido por Jonas)
-
Quanto tempo? Diga a verdade!
-
Não se sabe ao certo, talvez dias, semanas, mas não mais do que um mês. Por
essa razão eu estou aqui, para conversar com você e te conscientizar de que a
equipe médica está fazendo de tudo para que você fique o mais confortável
possível, sem dor e com toda a assistência necessária nessa hora que sabemos
ser a mais difícil.
Por
um minuto Jonas olhou pela janela e viu o mundo que não conseguiria tocar nem
sentir novamente.
Porém,
não estava triste. O fim estava se aproximando e, com ele, o seu sofrimento.
Não seria preciso tirar a própria vida, apenas esperar mais alguns dias para
que tudo aquilo pudesse ter um fim.
Apenas
queria partir sem dor e sem deixar aqueles que o amavam, sua família, seus pais
e irmãos, com a melhor lembrança que poderiam ter dele. Isso o suicídio não
poderia fazer.
Por
um instante agradeceu por aquele tumor e sorriu, pois a dor e a vergonha não seriam
tão grandes para os familiares. Apesar de morar sozinho (por opção) Jonas tinha
uma família grande e amorosa. Ele se culpava por ter tudo isso e, ainda assim
se sentir tão triste e sozinho.
Ângelo,
então, interrompeu o momento reflexivo induzindo Jonas a falar um pouco sobre
sua vida. Após narrar todo o episódio de depressão e das ideias suicidas Jonas
resolveu ir além e ter com ele uma conversa que jamais tivera com ninguém.
Resolveu
expor suas culpas e, perto do fim, tentar entende-las e deixa-las para trás.
Queria partir bem, leve e livre de qualquer sentimento que pesasse sobre seus
ombros.
-
Agora que eu sei que vou morrer – disse Jonas – se eu pudesse ter um desejo
apenas, eu gostaria de ter a possibilidade de voltar em cinco situações, cinco
dias da minha vida, onde algo terrível aconteceu e refazer minhas ações
daqueles dias. Mudar, fazer diferente. Era só o que eu poderia pedir agora que
sei que minha morte é algo certo e irreversível. Não tenho medo de morrer e
confesso que, por muito tempo esse foi meu maior objetivo. Mas antes que eu
realmente me revestisse de coragem para me matar, queria viver um dia apenas, mesmo
que por algumas horas, sem essas culpas que me massacraram a vida inteira por
situações onde eu poderia ter agido diferente e não o fiz.
Ângelo
então, entendendo os anseios de Jonas, diz, com a mais amistosa das vozes:
-
Então vamos começar a lembrar dessas dias. Conte-me exatamente o que aconteceu,
como isso te magoou, por qual razão te afeta até hoje e o que você poderia fazer
para que isso mudasse, qual atitude tomaria. Talvez isso te deixe melhor,
talvez não. Mas minha opinião pessoal é que, perto da morte, vale a pena lidar
com sentimentos mal resolvidos, para que tudo fique esclarecido e você possa
partir em paz consigo mesmo. Afinal de contas, se você procurou a paz esses
anos todos, nada mais justo que a encontre, ainda que por um breve momento. Por
isso estou aqui.
Nesse
momento, pegou a caneta, a prancheta e disse:
-
Comecemos pelo primeiro dia. Conte-me o que aconteceu.
CONTINUA
NO CAPÍTULO II
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