quarta-feira, 29 de julho de 2015


“ANTES DO FIM”

CAPÍTULO II


Passava das onze da manhã. O dia estava chuvoso e Jonas deitado em seu leito olhava para as gotas de chuva que batiam na janela do seu quarto.

Sua cabeça doía muito. Formou-se um silêncio sepulcral naquele recinto. Ângelo empunhava sua caneta esperando que Jonas começasse a falar sobre os dias que gostaria de mudar na sua vida.

Mas o rapaz parecia profundamente triste e de certa forma relutante em começar a falar. Por isso Ângelo resolveu sair da sala e deixar Jonas sozinho por alguns instantes para que pudesse entrar em contato com seu passado e ajustar as contas com ele, antes que a morte o levasse.

Jonas olhou mais uma vez pela janela e se lembrou de quando era apenas um garoto, de cerca de onze anos. Aquela chuva o fazia lembrar de um dos momentos mais tristes de sua infância e que seria o primeiro que mudaria.

A janela lembrava a que ficava no quarto de seus pais, onde o rapaz passava a maior parte do seu tempo olhando a rua, acompanhando as pessoas que ali passavam, apressadas e sem perceber aqueles pequenos olhos atenciosos acompanhando seus passos.

Gostava de parecer invisível na maior parte das vezes. Achava que tendo esse poder, seria capaz de conhecer as pessoas em sua essência sem que com elas interagisse. Era bastante observador e chegava a imitar os movimentos que presenciava.

Em frente ao hospital um colégio funcionava a todo gás. Era momento de saída dos alunos e Jonas captou uma mãe que esperava seu filho sair. Estava de guarda chuva. Não demorou muito até que o garoto aparecesse e pulasse no colo daquela jovem mãe, abrigando-se debaixo do guarda chuva.

Por um instante o choro veio até a garganta. Mas ele se conteve. Sabia que precisaria começar a desabafar o quanto antes com Ângelo e que as lagrimas poderiam prejudicá-lo nesse momento.

Precisava manter as emoções controladas para que pudesse ser o mais sincero possível, afinal, restava-lhe pouco tempo.

- Podemos? – disse Ângelo sentando-se ao lado do leito.

Jonas olhou o psicólogo e voltou a se deitar.

- Engraçado – disse ele – eu acabei de presenciar uma cena que fez eu me lembrar do primeiro dia que gostaria de mudar na minha vida. Minha família sempre foi muito humilde e nós sempre cuidamos um do outro. Mas nem todos tiveram esse pensamento a vida toda.

Ângelo nesse momento passou a anotar as palavras que Jonas dizia acompanhando suas reações. Prosseguiu:

- Eu me recordo de um dia chuvoso como o de hoje. Eu devia estar na terceira série do primário, não me recordo ao certo. Era hora da saída e eu procurei me abrigar com os amigos embaixo de uma marquise na porta da escola, sem perceber que minha mãe me aguardava do lado de fora com um guarda chuva, o que me causou um desconforto imenso, pois eu não queria ser o “cara que a mamãe vai buscar na escola”. Naquela época era comum voltarmos sozinhos para casa, mas estava chovendo demais e minha mãe se dispôs a enfrentar aquela tempestade para buscar o filho. Eu senti vergonha. Quando ela veio em minha direção eu fingi que não a conhecia e continuei conversando com meus amigos, que dividiram o guarda chuva comigo. O que mais me choca até hoje e que naquele momento não representou muita coisa foi o fato de minha mãe ter cedido seu abrigo para que nem eu nem meus amigos nos molhássemos. A cada tentativa em pegar minha mão eu me esquivava. Olhei em seu rosto e, em meio aos pingos de chuva que caiam em seu rosto eu pude perceber uma lágrima caindo. Aquela lágrima que sai cortando o olhar, como se viesse diretamente de um reservatório de decepção. Ela estava triste com minha ação. Eu a ignorei, tive vergonha dela. Ao chegar em casa ela chorou copiosamente e eu não tinha a menor noção do que teria acontecido, muito menos que tal fato teria se desencadeado por minha causa. Algum tempo depois, um pouco mais maduro eu descobri o motivo. Ninguém sabe que a culpa que eu carrego teve inicio nesse episódio. Minha mãe sempre se desdobrou para que tivéssemos o melhor, sempre cuidou da gente. Porém, na primeira oportunidade eu a “presenteio” com uma cena dessas. Os anos foram se passando e a cada novo carinho que ela me fazia, cada novo ato de bondade, cada “eu te amo” que ela dizia eu sentia uma punhalada enorme no meu coração. Eu nunca me perdoei pelo que aconteceu e dificilmente conseguirei me perdoar, mas gostaria de poder mudar esse dia. Com toda a força do meu coração, eu queria poder voltar naquele dia chuvoso e pular no colo dela quando a visse na porta da escola e dizer que a amava na frente de todos. Eu sei que no fundo isso é uma coisa que também a deixa magoada até hoje, mas o coração daquela mulher é tão grande que ela não deixa que isso a sufoque. Mas eu sei que ela não esqueceu.

E Jonas chorou. Copiosamente.

As lágrimas que caíam de seu rosto eram tão pesadas que pareciam furar o chão. Afinal de contas, aquele segredo permaneceu intocado por mais de 25 anos. A culpa também veio junto com o pranto. As lágrimas pareciam uivar como lobos ao saírem de seus olhos, carregadas com o mais negro dos sentimentos: a mágoa de si próprio. Experimentar o imperdoável lhe deixou naquela situação. Era como se um demônio se revelasse dentro dele mas insistisse em gritar “essa alma é minha e ninguém será capaz de me tirar daqui”.

Ângelo, porém, deixou que aqueles anos de culpa deslizassem no fluxo daquelas lágrimas. Depois ousou falar.

- Eu não posso simplesmente arrancar essa culpa de você. Eu até acho que você deva expiá-la, se é algo que te incomodou por tanto tempo assim. Mas algo precisa ser dito. O que aconteceu não quer dizer que você não tenha amado sua mãe. Não é nada disso. Esse episódio apenas revelou uma necessidade momentânea de se sentir incluído. Você sempre foi uma pessoa introspectiva e aquele fato ameaçava a única chance de um momento de libertação, ainda que pequeno. Óbvio que ela deva ter ficado decepcionada, pois não esperava essa atitude. Mas se esse é o momento em que você deve expiar sua culpa, faça-o, mas prepare-se para tentar abandonar esse sentimento. Depende mais de você do que da medicina, da psicologia, enfim. Você deve entender que foi um episódio isolado e que – sim – você poderia ter agido de forma diferente, mas não o fez. O que resta fazer? Superar. Você ama muito sua mãe e a maior prova disso é esse fardo que você insistiu em carregar sozinho por longos anos. Não confunda isso. É comum os jovens quererem uma certa autonomia nas relações, sem a interferência dos pais. Você queria mesmo que esse dia fosse diferente? Descreva-o para mim.

- Eu a abraçaria – disse Jonas – e a beijaria como se fosse o último dia da minha vida. Jamais a deixaria na chuva, enquanto eu me abrigava. Faria tudo por ela naquele momento. Faria as graças que sempre fiz enquanto pequeno para que o caminho até nossa casa fosse o mais ameno possível, debaixo daquele temporal. Eu diria que a amava. Mas não posso fazer isso...

- Por que não? – disse Ângelo – A partir de agora essa é sua nova realidade. Aquele dia deixou de existir. Você vai condicionar seus pensamentos e direcioná-los a abandonar esse fardo, desenhando o modelo de dia chuvoso perfeito que você acabou de me descrever. É isso que você deve levar consigo. Os melhores momentos da sua vida, ainda que apenas na sua imaginação tenham acontecido. Liberte-se dessa prisão!

Jonas sentiu-se leve ao imaginar o sorriso orgulhoso de sua mãe ao discutir com ele as matérias dadas em aula até o portão de casa. Sentar e tomar um chocolate quente, explicando os fatos históricos relevantes que viu em aula.

E sorriu. Pela primeira vez em anos sorriu ao lembrar-se daquele dia. Era como se uma imensa e carregada nuvem tivesse sido removida de cima dele e o sol passasse a reinar após aquele temporal.

Curiosamente, ao olhar pela janela notou que havia parado de chover e o sol brilhava, faceiro entre as nuvens. O cheiro de asfalto molhado invadia o recinto. Aquele demônio aprisionado parecia ter sido domado. Ele ainda existia, mas não dominava tanto a alma de Jonas.

Ainda olhando para fora, vendo o sol, disse algo que nunca teve a oportunidade: “eu te amo mãe”.


CONTINUA NO CAPÍTULO III  


3 comentários:

  1. Excelente! A dramaticidade envolve o leitor no sofrimento de Jonas. Parabéns!

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  2. Parabéns! Libertar-se é possível! Da chuva ao sol! Jonas está renascendo emocionalmente!

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  3. Um manifesto ao amor. Brilhante!

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