terça-feira, 30 de dezembro de 2014


“Os olhos não traem”
 
 
Sou contra o uso clichês, seja no começo, no meio ou para encerrar meus textos. Acredito que uma ideia boa pode ficar ofuscada pela utilização de algo às vezes tão simples.
Mas não dessa vez.
Por muito tempo eu neguei o que todos diziam, ou seja, que “os olhos são a janela da alma”.
Todos esses anos convivendo com uma doença que consegue corroer os sentidos e acabar com a sanidade aos poucos fez perceber o quanto os olhos revelam do interior da pessoa.
Eu explico!
Certo dia decidi começar uma pesquisa de campo, por conta própria e sem nenhum fundamento lucrativo ou científico, apenas por curiosidade, pois peguei-me pensando que, assim como uma seita secreta os deprimidos se reconhecem pelo olhar.
Para tanto, esperei um dia em que estivesse em total estado de desolação (os quais eram até comuns) e saí às ruas. Reparei que algumas pessoas me encaravam, algumas com certa piedade, outras com desprezo e algumas outras com solidariedade.
Essas últimas chamaram minha atenção.
Tentei traçar um padrão entre os olhares e percebi que as características se repetiam. O olhar do deprimido acompanha seu andar até certo ponto. Quando se sente ameaçado é desviado. Mas, quando percebe que se deparou com alguém que sofre a mesma dor o olhar muda. Parece que algum tipo de alegria aponta naqueles olhos, como quem tenta dizer: “que bom que não estou sozinho. Você também não está!”.
Porém, por mais que seja uma constatação, isso é muito triste e conseguiu me deixar bem triste também.
Durante algum tempo fiquei dominado por essas constatações, tentando descobrir pelo olhar quem também sentia uma tristeza interna quase invencível. Isso me fez muito mal, pois percebi que muita gente se sentia assim, o que não era justo.
Como, em um mundo tão grande e cheio de maravilhas, as pessoas conseguem se sentir tão tristes?
O que mais me chamava a atenção era a divisão daqueles rostos em duas partes: o sorriso, que dizia uma coisa e o olhar, que dizia outra, geralmente a verdade.
Recordei-me de quantas vezes eu sorri e fiz os outros sorrirem, tentando dizer com meu olhar que tudo o que eu desejava era sumir daquele lugar, ter um pouco de paz, ficar sozinho.
Por mais que tenhamos a boa vontade de manter o sorriso, os olhos não mentem. Os olhos não traem.
Descobri a importância do olhar. É possível saber a vida de uma pessoa apenas olhando em seus olhos e, tenha certeza meu caro amigo leitor que, caso você aprenda a descobrir essa peculiaridade, terás um amigo para o resto da vida.
Ainda que estejamos aparentemente bem, os olhos insistirão em dizer o contrário e não é por mal. Eles tem vida própria, não conseguimos controlar essa autonomia que eles fazem questão de dizer que tem.
Já pedi socorro com os olhos, mas sem saber que nem todos poderiam enxergar minha alma como eu conseguia enxergar a dos outros.
Esse é um dom maldito que só os deprimidos tem: enxergar a tristeza oculta no olhar do outro.
Eu trocaria esse dom por qualquer outro, de verdade. Até pelos mais fúteis. Na verdade eu trocaria meu cérebro pelo mais fútil dos cérebros, se houvesse a garantia de que ele viria sem esse “defeito infernal” que me acompanha há 34 anos.
 
Porém aprendi a tirar um lado bom (se é que é possível) disso tudo: tento ajudar na medida do possível, utilizando esse dom desgraçado que me foi conferido. Tento ouvir, compreender, aconselhar.
 
Tenham certeza que minha vida se tornou muito menos indesejável depois que aprendi a ajudar.

sábado, 6 de dezembro de 2014

“Para sempre Ana”
(continuação de “Essa não é mais uma estória de amor") 


“Durante esses anos viajando, de todas as belezas de todos os países e lugares que tive a oportunidade de visitar, os olhos de Ana foram as únicas coisas inesquecíveis. O único lugar que gostaria de visitar um dia. Sabe aquele lugar mágico que todos temos? Uma casa na praia, um campo verdejante, a residência de um parente. Todos temos um lugar mágico que, mesmo não sendo possível fisicamente, nosso coração sempre dá um jeito de visitar. Meu lugar mágico são os olhos de Ana. Ainda que eu não possa tê-los, meu coração sempre vai até o encontro deles.”
E assim começava o livro de Pedro. A estória que o fez andar o mundo todo agora tinha um tema: “Ana”.
Após o retorno ao país, Pedro, que já havia gastado todas as reservas da viagem, decidiu que escreveria sobre Ana, pois havia descoberto que a estória perfeita tinha sido descoberta no final da viagem, no último dia, “aos 45 do segundo tempo”.
Porém, como todo ser humano vivendo numa metrópole como São Paulo, viver demanda gastos elevados e ele já não tinha o emprego de quando decidiu viajar. Era preciso trabalhar.
Ao deixar o país em busca de seu sonho, Pedro abandonou o emprego de executivo numa grande empresa, pondo-se no mundo atrás de fatos e pessoas que lhe rendessem um livro memorável.
Evidentemente o emprego não o esperaria no Brasil e ele sabia muito bem que não poderia ficar sem trabalhar, afinal, as contas não se pagam sozinhas, como seu pai sempre dizia. Mas voltara com uma cabeça diferente e mais aberta da viagem. Era um homem mais simples e com olhos para as coisas mais triviais da vida, que antes não conseguia enxergar.
Após muita procura conseguiu um emprego como atendente numa loja de eletrônicos. Não era o emprego de sua vida, ganhava cerca de vinte vezes menos, mas pagaria as contas. Não reclamava disso. Em sua cabeça, o pedido de demissão da grande empresa em que trabalhava possibilitou que ele conhecesse seu “lugar mágico”.
Pensava em Ana todos os dias. Não era normal aquilo.
Não tiveram tempo de se apaixonar e a moça ainda deixou bem claro que sua vida era complicada o suficiente para que isso acontecesse, ainda que em um futuro remoto. Mas no fundo ele não pensava em outra coisa. Sabia, também, que se deixasse seu desejo aflorar, perderia Ana para sempre e isso não poderia sequer ser cogitado.
Porém, Ana e Pedro se correspondiam com uma frequência avassaladora. Falavam-se todos os dias, conforme haviam prometido durante o encontro na Europa.
Em segredo, Pedro juntava dinheiro para se mudar para a Itália. Além do trabalho como vendedor de eletrônicos, ainda desdobrava-se com aulas particulares de italiano, o que lhe rendia um dinheiro extra. Decidiu que se mudaria para a Itália sem falar com Ana e talvez nunca contaria, ainda que lá estivesse. Mas talvez essa saudade avassaladora que sentia pudesse ser um pouco aliviada pelo simples fato de estar mas próximo dela. Porém, sabia que não poderia e nem deveria tentar se aproximar de Ana. Não tinha esse direito.
Mas, por mais que ele não quisesse pensar nisso, Ana apresentava um olhar triste nos últimos dias, o que era denunciado pelas conversas que tinha via Skype. O brilho dos seus olhos parecia desaparecer e a moça aparentava ter uma nuvem pairando sobre sua cabeça, como uma dúvida desleal que a abatia.
Ela respondia às indagações de Pedro sobre isso com um: “Estou cansada, só isso”, o que causou uma enorme preocupação mas ele não queria ser “o chato” que insistiria em perguntar algo que a moça não queria conversar. Mas insistiria de forma sutil até que ela se abrisse.
Percebeu um abatimento maior no rosto de Ana, parecia uma flor que murchava com o tempo. Aquilo o entristecia. Ana apresentava um discurso que parecia dar a entender um descontentamento com alguma situação que Pedro não entendia bem.
Os dias foram passando e Ana parecia mais triste.
Até que Pedro não resistiu e indagou:
- Tenho percebido uma certa tristeza em você nos últimos tempos? O que está acontecendo?
Ana deixou cair uma lágrima e respondeu apenas:
- Talvez a situação seja muito difícil para que você consiga aceitar ou entender. Talvez seja apenas uma coisa minha com o que terei que aprender a lidar sozinha. Não que eu não confie em você, não é isso! Mas você está envolvido nisso também e eu não quero te machucar. Enfim... falei demais.
Pedro então, atônito, resolveu indagar com certa veemência:
- Bom, se eu estou envolvido nada mais justo que eu saiba o que está acontecendo! Agora eu faço questão que você me diga. Eu falei alguma coisa errada? Fiz alguma coisa errada? Deixei de fazer alguma coisa.
Ana, nesse momento desviou o olhar (estavam conversando pelo Skype) e respirou fundo fechando os olhos demonstrando uma certa preocupação como quem diz: “meu Deus, ele quer mesmo saber...”. Olhou para a tela do computador, baixou os olhos e, levantando a cabeça novamente, encarou Pedro nos olhos e começou a falar:
- Olha Pedro, você sabe que eu tenho uma família maravilhosa, que eu amo e jamais faria algo que os magoasse. Mas aí, aparece você na minha vida, despretensioso e desastrado, atencioso e acolhedor, sendo simplesmente a pessoa que sempre sonhei ter do meu lado. Eu não sei o que fazer, não quero te magoar, mas também não consigo lidar com esse sentimento. Eu estou apaixonada por você e isso vem me consumindo pois nunca senti isso antes e não acho justo que eu sinta isso, pois existem muitas pessoas envolvidas que eu amo muito, inclusive você. Não quero te perder mas também não quero ter esse sentimento no peito.
Pedro deixou escapar um sorriso nesse momento e interrompeu Ana, que esboçava dizer alguma coisa:
- E se eu disser que sinto o mesmo? Que até agora não te disse nada por conta da promessa que te fiz de nunca sair do seu lado e ser seu amigo para sempre? Penso em você todos os dias, do momento que acordo ao momento em que me deito. Te vejo nas pequenas coisas do meu dia, desde uma música que ouço até o temporal que cai no final da tarde. Eu estou mais envolvido nisso do que você pensa e não é de hoje. Mas não disse nada porque senti que poderia perder você.
Percebeu então que os olhos de Ana mudaram naquele momento e ele pode ver que por um instante eles pareciam sorrir.
- Por um lado é muito bom saber disso. – disse Ana. Mas por outro é muito complicado, pois eu temo machucar alguém que amo tanto. Sim, eu te amo. Mas não posso te dar o amor que eu quero, não nesse momento. Mas sei também que você não merece esperar por mim, pois eu não sei se terei a resposta que você quer ouvir. E se eu tiver, quanto tempo levarei para isso. Eu quero te ver feliz meu amor, sempre. Você não merece esperar por mim, muito embora eu saiba que a noticia de que você tem alguém destruiria meu coração, por um lado. Por outro eu ficaria feliz em saber que você está bem. Mas eu te amo demais e não sei lidar com esse sentimento.
Pedro parou por um instante. Não sabia o que dizer. Procurou as melhores palavras e disse apenas:
- Eu te espero... O tempo que for preciso. Dias... meses... anos... o tempo que você precisar!
Ana parecia temer essa resposta e fechou os olhos deixando cair uma lágrima, dizendo:
- Não desista de mim meu amor, por favor! Por mais que eu não possa dar o sentimento que nós dois merecemos, tenho medo de te magoar demais. Minha mente está em conflito. Ao mesmo tempo que eu gostaria que você seguisse a sua vida, eu não quero que desista de mim... preciso ir, estou muito confusa, desculpe.
Ficaram se olhando por um tempo e desconectaram.
Pedro ficou esperançoso com aquela conversa pois sabia que Ana era o que ele mais queria e que se fosse para ficarem juntos, ele esperaria o tempo que fosse pois sentia por ela algo muito maior do que “esse tal de amor que os mortais tanto falam”.
Os dias se passaram e Ana parecia meio distante, sempre ocupada. Pedro imaginou que a moça estava fugindo dele. Tentou contato de todas as maneiras possíveis até decidir que deixaria Ana ter o tempo que ela quisesse, por mais que sentisse saudade.
Algum tempo depois, por seu perfil no Facebook pode perceber que ela esteva adoentada e foi internada por alguns dias, o que fez com que ele tentasse por todas as formas contato, sem sucesso.
Não conseguia trabalhar direito e a vontade era sair correndo de onde estava e ir até a Itália atrás de noticias da moça. Porém, sabia que não poderia fazer aquilo, poia Ana tinha sua família e ele, em algum momento, sentiu-se um intruso. Estava desesperado até que recebeu uma mensagem no celular:
“Oi meu amor, desculpe o sumiço. Estive adoentada esses dias. Quer tomar um café comigo?”
Pedro não notou nada de estranho, pois eles sempre se falavam dessa forma: “quer tomar um café comigo” foi uma das primeiras coisas que disseram na Itália quando se conheceram e essa era a senha para começarem a conversar. Respirou aliviado e quando começou a digitar recebeu outra mensagem:
“olhe para o fundo da loja”
Lá estava ela, radiante. Sorrindo e emanando um brilho jamais visto naqueles olhos azuis que mais pareciam o mais azul dos mares iluminado pelo sol do caribe. Pedro, sem muito pensar, pulou o balcão onde estava e correu para abraça-la. Os dois ficaram presos naquele momento por quase uma hora, até decidirem ir realmente tomar um café.
Pedro a olhou por um instante. Estava abatida, talvez pela viagem ou pela indisposição que tivera na Itália. A moça então começou a falar:
- Você deve estar achando estranho eu aparecer do nada aqui no Brasil, não é? Bom, eu decidi que visitaria alguns parentes (todos na verdade) e por último, queria te ver...
Nesse momento Ana fez uma longa pausa e seus olhos azuis brilharam e ela prosseguiu:
- Não vou entrar muito em detalhes técnicos pois acho desnecessário, mas a consequência do meu problema de saúde é que tenho apenas mais 48 horas de vida. Recebi anteontem o diagnóstico e saí direto do hospital com destino ao Brasil. Na verdade eu tenho mais oito horas só e queria que essas oito horas fossem passadas do seu lado. Sei que é difícil eu te pedir isso, mas eu quero que a ultima imagem que eu tenha dessa vida seja seu rosto e a ultima sensação seja seu abraço...
Pedro ficou atordoado, demais. Não sabia se chorava, se perguntava se tudo aquilo não passava de uma brincadeira de mal gosto. Mas ficou apenas paralisado. Olhou a moça e começou a falar:
- Eu poderia perguntar milhares de coisas nesse momento: por que eu? Por que morrer? Por que Deus faria isso com a gente? Mas acredito que nosso tempo seja curto para perguntas sem respostas. Eu quero te levar num lugar onde você poderá passar esse tempo do meu lado vendo a cidade que te esperou por todos esses anos.
E os dois saíram. Ela segurando o braço dele e sentindo por fim o carinho do homem que amava. Ele, deixando-se entregar àquele breve sentimento que, dentro de horas seria extirpado de forma brutal pela finitude humana. Chegaram, então, a um mirante onde podiam ver toda a cidade. Sentaram e ela adentrou no abraço de Pedro. Olharam-se nos olhos e deram um longo beijo, com gosto de primeiro e último. Apaixonado, regado a suspiros e juras telepáticas de amor eterno.
Depois olhando o por do sol, Pedro, convencido de que aquele era seu “lugar mágico”, ao lado de Ana, começou a cantar baixinho no ouvido dela:
“E nossa estória não estará pelo avesso assim sem final feliz... teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer. Não olhe pra trás, apenas começamos. O mundo começa agora. Apenas começamos”      
Encerro por aqui a narrativa do que começou com a promessa de não se apaixonar. Ana morreu? Pedro morreu junto com ela? Pedro escreveu seu livro?
Jamais saberemos.
Pois a morte, nesse caso é apenas uma questão secundária. O amor que prometeram não ter um pelo outro e que acabaram descobrindo não morreu e jamais morrerá.
Na verdade o que mantém viva a estória desses dois é exatamente esse amor proibido que, em certo momento da vida se tornou possível e se prolongou pela eternidade.
Se existirem outras vidas, em todas Pedro caminhará atrás da alma de Ana, pois a ligação que os dois tiveram transcende a existência terrena.
Não é hora de escrever “fim”. Pois como dito, essa estória não acaba, não tem fim. O amor que Pedro sentiu, sente e sentirá por Ana durará para sempre.


domingo, 16 de novembro de 2014

“ESSA NÃO É MAIS UMA ESTÓRIA DE AMOR”



Pedro um belo dia, por volta de seus trinta e poucos anos resolveu abandonar carreira e tudo o mais e sair pelo mundo em busca de estórias interessantes e que pudessem, um dia, render um bom livro ou, apenas algo que valesse a pena perder alguns minutos de leitura sem pensar que tudo aquilo poderia ser um grande desperdício de tempo.
Nunca na vida tinha pensado em ser escritor. Aliás nem se achava capacitado para tanto. Porém, alguns rabiscos sem conexão e uma vida profissional extremamente atribulada e sem qualidade nenhuma o fizeram repensar todo o seu caminho.
Portanto, lá estava ele: com uma mochila nas costas, o notebook na mão e um mundo inteiro pela frente.
Na verdade decidiu unir o útil ao agradável: a paixão pelas letras e a vontade de conhecer lugares novos e pessoas novas, com suas próprias trajetórias de vida e com momentos memoráveis que valessem ser registrados. Vendeu o carro, seus instrumentos musicais e sacou o dinheiro que tinha guardado por um longo período (um bom dinheiro) e decidiu fazer seu próprio “Caminho de Santiago”.
E, dessa maneira, ganhou o mundo, levando poucas coisas e muitas expectativas.
Durante três anos pouco conseguiu fazer a não ser gastar o dinheiro que havia levado e conhecer lugares muito bonitos, porém pessoas pouco interessantes.
Com o dinheiro perto do fim, resolveu voltar para casa, já não havia muito sentido naquilo tudo. Não poderia mais ter gastos, afinal de contas o dinheiro que ainda tinha daria apenas para a hospedagem da próxima semana e para a viagem de volta.
Não havia muito escolha para ele, naquele momento não queria e nem poderia começar a trabalhar no exterior.
Descendente de Italianos, deixou o país de seus ancestrais por ultimo. Lá estava há quase uma semana e não conseguira nada além de visitar os pontos turísticos de Roma, o que, naquela altura dos fatos, não lhe ajudaria muito em seu propósito de encontrar “a estória perfeita”.
Já no dia seguinte à decisão de ir embora, como fazia todos os dias, dirigiu-se ao café em que estava acostumado a ir, tomar seu café da manhã e olhar as pessoas passarem pela rua. Adorava fazer isso. Ficar perdido com seus pensamentos enquanto observava a vida agitada passando na sua frente.
Naquele dia, porém, foi diferente. Um vazamento d’água fez com que o café ficasse fechado pela manhã. Como não queria perder seu ultimo dia de viagem comendo em qualquer lugar, resolveu ir em outro café do outro lado da rua, com o mesmo “display”: mesas do lado de fora, o que possibilitaria que enxergasse os romanos em sua pressa descoordenada. Entretanto, por alguma grande “sacanagem” do destino, todas as mesas estavam ocupadas, de modo que só restavam as mesas do interior, sem vista para a rua e algumas poltronas, com alguns livros.
“Quer saber? Que se dane!” disse ele em um sonoro português que não foi compreendido por ninguém (por sorte). Procurou uma poltrona e dirigiu-se a ela. Pegou seu Ipod na bolsa e, enquanto caminhava deixou que ele caísse ao chão, juntamente com diversas outras coisas, uns livros e uns CDs que sempre carregava consigo. Isso tudo acidentalmente (estava nervoso com toda aquela situação). Fechou os olhos e soltou um “que merda! Isso só pode ser brincadeira!!!”
Naquele momento ao se abaixar para pegar o aparelho que caíra, viu uma mão chegando antes dele às suas coisas e ouviu uma voz dizendo: “Ah, só poderia ser brasileiro”
Quando se levantou, deparou-se com os olhos mais lindos que vira até então: eram de um azul tão diferente de qualquer coisa já vista por ele em seus trinta e poucos anos de vida. Porém, a primeira vista algo lhe chamara a atenção: na mesma proporção que os olhos eram lindos também eram profundos. Pareciam dois lagos ocultos dentro de uma caverna. Lindos, porém profundos e misteriosos demais.
Pois naquele momento sua viagem começava a mudar: conheceu Ana, uma brasileira há anos morando em Roma. Muito simpática e compreendendo a cara de otário do rapaz, sentou-se ao seu lado e começou a conversar com ele.
Dizia ela que sentia saudades do Brasil e de sua família aqui, mas havia constituído família também na Itália. Perguntava a Pedro, em todos os momentos sobre seu país natal e coisas que lhe causavam saudades. Nesses momentos o rapaz pode perceber que por trás daqueles belíssimos olhos azuis alguma coisa mais profunda se escondia e que não deixava a moça viver uma vida em toda sua plenitude.
Poderia estar errado mas não conseguira descobrir naquele momento, pois Ana estava atrasada para o trabalho. Decidiram trocar mensagens depois que o rapaz voltasse ao Brasil.
E Pedro precisava voltar. Por mais que quisesse ficar e que entendesse que de alguma forma suas vidas estavam ligadas, seu dinheiro não era suficiente para mais de uma semana.
Mas saiu de lá com um sentimento estranho. Era normal sentir uma atração inicial por mulheres como Ana, seja de ordem passional ou sexual. Eram muito parecidos em um primeiro momento, tinham muitas afinidades. As mesmas músicas, os mesmos filmes, os mesmos livros, o mesmo esporte preferido.
Mas com ela era diferente. Por mais que Ana fosse extremamente atraente (e de fato era e muito) não tinha esse sentimento atração carnal por ela.
A atração que sentia vinha muito mais da necessidade de tê-la por perto do que de qualquer outra coisa. Tinha plenamente em seus pensamentos que, caso confundisse esses sentimentos perderia Ana para sempre.
Mas espere um momento, passaram-se poucos instantes desde que haviam se conhecido, como já pensar nisso logo de cara?
Pois é amigos, existem coisas na nossa vida que não demandam explicação. E as vezes nem tem explicação.
Julgando sua missão cumprida, Pedro decidiu partir naquele dia mesmo rumo ao Brasil e, para sua surpresa, naquele mesmo dia recebeu uma mensagem de Ana, dizendo que queria se despedir e que iria até o aeroporto para dar um abraço em Pedro.
Como seu voo estava em cima para sair, não houve muito tempo para nada além de um abraço breve e a promessa do contato mantido. Ao virar-se para embarcar Ana puxou Pedro pelo braço e lhe deu um envelope com um cartão dentro, onde dizia: “abra no avião”.
- Aqui terminamos apenas uma etapa da nossa vida, ou começamos uma vida nova, você escolhe a melhor definição. Porém, eu prefiro pensar que é apenas um começo! Ligue assim que chegar ao Brasil.
E, da janela do avião Pedro pode ver Ana olhando para ele com os olhos marejados e, ao abrir o cartão foi isso que leu:
Ali – Nando Reis
Ela entrou e eu estava ali
Ou será que fui eu que ali entrei
Sem sequer pedir a menor licença?
Ela de batom caqui
Com os olhos olhava o quê? Eu não sei
Olhos de águas vindas
De outros oceanos
Ela me olhou - Quem?
Quem sabe com ela
Eu teria as tardes
Que sempre me passaram
Como miragens, como invenção!
Se eu não posso ter
Fico imaginando
Eu fico imaginando
Virá com ela que entrega
Virá, sim, assim virá que eu vi
Virá ou ela me espera
Virá, pois ela está ali
Ela amou o que estava ali
Ou será que foi dela o que eu já amei
Como os laços fixos de uma residência?
Ela: Alô!? E eu não reagi
Com os olhos olhava o que eu lembrei
Quando andava indo
Em outra direção
Ela me olhou - Vem!
Quem sabe com ela
Eu veria as tardes
Que sempre me faltaram
Como miragens, como ilusão!
Se eu não posso ver
Fico imaginando
Eu fico imaginando
Virá com ela que entrega
Virá, sim, assim virá que eu vi
Virá ou ela me espera
Virá, pois ela está ali
Ela andou e eu fiquei ali
Ou será que fui eu que dali mudei
Com uns passos mudos
De uma reticência?
Ela me olhou bem
Quem sabe com ela
Eu teria achado
O que sempre me faltava
Cores, colagens, sons, emoção!
Se eu não posso ser
Fico imaginando
Eu fico imaginando
Virá com ela que entrega
Virá, sim, assim virá que eu vi
Virá ou ela me espera
Virá, pois ela está ali”
Apenas essas palavras, mais nada. Enquanto refletia, olhava pela janela e para a moça, cujos olhos azuis iluminavam todo o saguão do aeroporto naquele dia frio em Roma.
Por um instante Pedro chorou. Viajou três anos e no ultimo momento toda aquela experiência valeu a pena!
Entretanto, mal podia esperar para chegar ao Brasil e ligar para Ana para saber o que queriam dizer aquelas palavras naquele cartão. As horas de viagem pareciam intermináveis. Durante aquele tempo, abriu o notebook e esboçou algumas palavras mas não conseguia parar de pensar em Ana. Mas de um modo estranho. Não pensava nela como alguém com quem quisesse ter um relacionamento. Apesar de que Ana preenchia todos os requisitos para tanto, mas ele sabia que aqueles acontecimentos revelavam algo muito mais profundo do que uma história de amor ou apenas tesão.
Não pregou os olhos durante a viagem que, após longas horas chegava ao vim, desembarcando em São Paulo.
No taxi Pedro releu o cartão. Não entendia muito aquelas palavras pois conviveu com Ana apenas um dia e algumas horas de conversa.
Pois tão logo chegou em casa ligou para Ana. Após as perguntas sobre a viagem e o tempo em São Paulo, Pedro a interrompeu e perguntou:
- O que você quis me dizer com aquele cartão? Eu adorei, não me entenda mal, mas não consegui compreender o significado daquelas palavras e tenho medo de estar errado a respeito do que pensar sobre isso.
Ana, após uma breve pausa disse:
- Talvez você não tenha percebido, mas aquele, antes de nos conhecermos, eu havia tomado a decisão de acabar com a minha vida. Já não aguentava mais as pessoas me julgando pela vida “estável” que levo, pela família maravilhosa que tenho e por minha aparência perfeita. Venho sofrendo anos a fio com essa sensação. E o pior de tudo, ainda me culpo por me sentir assim. Sinto um peso maior por ter esse sentimento do que por querer a morte muitas vezes. Mas ninguém sabe disso, eu saí totalmente sem rumo naquele dia. Amo minha família, meus filhos, meu marido, mas não queria que eles sofressem se soubessem que eu penso dessa forma e eu simplesmente não conseguia mais não pensar. Pois aquele dia havia decidido que tudo teria um fim. Foi nesse momento, quando eu tinha ido tomar o último café no lugar que eu mais amava naquela cidade que eu vi alguém desajeitado entrar por aquela porta, derrubando tudo e deixando cair o encarte, juntamente com o Ipod, de uma banda que adoro. Você lembra que deixou cair o encarte do CD do Candlebox? Provavelmente não. Pois procure na sua bolsa. Você não achará. Eu simplesmente me recusei a devolver e nem me esforcei para provar o contrário pois eu não acho que aquilo foi um mero acaso do destino. Deveríamos estar naquele lugar, naquela hora e você, como todo esse seu jeito desastrado e os mesmos gostos que eu conseguiu me mostrar que existem mais pessoas nesse mundo pelas quais vale a pena continuar. Somos, no fim das contas, um apoio para outras almas perdidas que precisam apenas de algo em que se apegar para continuar essa loucura que se chama vida. Eu percebi em você que eu poderei contar sempre, em qualquer situação sem que você me julgue, julgue meus sentimentos e atitudes, minhas vontades e meus momentos de desespero. Apenas estará ali e pronto. A vida vale a pena? Não posso te dizer isso. Mas daquele dia em diante eu percebi que morrer vale muito menos.
Por um instante Pedro ficou mudo. Pois sentira o mesmo naquele dia: abandonara tudo em busca de um sonho, perambulando pelo mundo por três anos sem nem chegar perto do seu objetivo. Até que uma das muitas ironias do destino colocara no seu caminho aquilo que tanto esperou: a história perfeita.
Não se trata de amor. Ou melhor, até se trata de amor, mas em uma de suas tantas vertentes, uma vertente menos carnal e mais espiritual. Duas almas perdidas que se encontram e podem desfrutar dos percalços do caminho, sempre levantando a outra quando essa não suportar e cair.
Mal sabia Pedro que, encontrando Ana, estaria prestes de escrever a sua obra prima. Sua viagem passara a ser seu maior acontecimento. O que até então parecia uma perda de tempo, passou a ser o momento de sua vida.
Pois, como dito, encontrando Ana, Pedro pode entender escrever sua própria história.  

  

quarta-feira, 12 de novembro de 2014


“LAVÍNIA”

 

 

Era mais um final de expediente como outro qualquer, apesar de estressante nada muito fora da rotina normal.

Lavínia saía da empresa com as amigas de trabalho. Sempre muito alegre, conseguia fazer com que todas sorrissem com ela, desde as mais fechadas e grossas até as mais espirituosas. De fato, tinha o dom único de impor sua simpatia sem muito esforço. Talvez esse fosse o principal motivo pelo qual todos gostavam dela e a respeitavam.

Tinha um excelente cargo numa empresa, conquistado após muito esforço e dedicação. Um emprego por muitos almejado, mas por poucos alcançado. Conseguia se destacar em tudo o que fazia.

Casada, tinha seu lar e pouco saía com as amigas. Era muito caseira e se dava muito bem com o marido.

Kleber era uma pessoa de difícil trato, de criação conservadora e ideias ultrapassadas, não tinha lá seu entendimento das coisas.

Apreciavam coisas diferentes e, a partir disso, tinham seus desentendimentos, mas nada muito grave aos olhos dos outros.

Levava uma vida acima da média para alguém de seus trinta e poucos anos.

Talvez todos esses dados tenham causado o espanto nas amigas de Lavínia quando, logo na manhã seguinte, souberam que a amiga fora encontrada pelo marido, sem vida.

Não poderiam imaginar aquele rosto tão sereno, belo e compassivo, agora gélido e sem cor, seria acariciado pelos longos e impiedosos dedos da morte.

Ninguém sabia como, nem por qual razão, não poderiam mais contar com o sorriso e o espirito que a todos contagiava. A morte de Lavínia, nas circunstâncias em que ocorreu, era, além de uma tristeza infinita, um grande choque para todos!

Uma morte tão repentina e sob circunstâncias estranhas.

Haveria alguma explicação para tudo isso! Como a vida de Lavínia fora ceifada tão abruptamente?

Era essa a indagação de seus amigos quando chegaram ao velório e se depararam com a cena dos irmãos abraçados com os pais da moça e o marido em um segundo plano, completamente entregue à dor.

O próprio Kleber tinha poucas palavras naquele momento. Preferiu o isolamento. A dor que só os irmãos e os pais poderiam sentir os corroía naquele momento. Lidar com a ausência de quem mais amavam seria, para o resto de suas vidas, seu maior pesadelo.

A comoção se arrastou por algum tempo, ainda depois do funeral.

É difícil substituir o vazio que mesmo a pior das pessoas causa na vida do ser humano, quiçá de alguém aparentemente tão querido como Lavínia!

Ninguém sabia como tudo aquilo teria acontecido e ninguém sabia ao certo o que teria acontecido para que Lavínia tivesse partido daquela forma.

Um mês se passou desde sua morte e, até então ninguém sabia a causa da morte, até que mais uma bomba explode em meio àqueles que com ela conviveram: Lavínia havia sido envenenada!

Mas...como? Quem? Por qual razão? Após a morte de Lavínia, a qual teria ocorrido por circunstâncias até então misteriosas, uma necropsia foi efetuada no corpo, onde foram encontrados resquícios de veneno usado para ratos, emaranhado em restos de comida ainda intactos no estomago da moça. Por óbvio após tal resultado da perícia, a polícia começou uma criteriosa investigação, cujo cenário foi a casa onde o casal residia.

Depois de uma varredura em todos os cômodos, foi encontrado um frasco com veneno de rato. Tal material foi apreendido e levado para análise.

A polícia científica, por fim, concluiu que se tratava do mesmo veneno que matara Lavínia. Restava agora descobrir por qual razão aquele veneno havia parado no estomago da moça. E esse era o próximo passo a ser tomado pela polícia rumo ao mais aterrador de todos os desfechos esperados pelas pessoas que conviveram com a moça ao longo de toda a sua vida.

Após muita investigação, o depoimento de um dos vizinhos reforçou a suspeita que os policiais alimentavam. O vizinho de frente havia presenciado inúmeras vezes discussões entre Kleber e Lavínia. Ouvira, ainda, por diversas vezes, Lavínia pranteando sozinha, após Kleber deixar o apartamento, aparentemente enfurecido, batendo as portas, jogando as coisas pelo caminho e quebrando o que encontrava pela frente.

Daí a presunção de que o veneno não andara sozinho até o prato de Lavínia. Tinham convicção plena de que a moça havia sido envenenada pelo marido.

Kleber, no entanto, durante toda a fase investigatória, permaneceu firme na ideia de que não matara a esposa, não teria ele motivos para tanto. Pelo contrário! Sofria com a ausência da mulher e ainda mais por saber que estava sendo acusado de tirar a vida de quem tanto amava.

Mas a prova era desfavorável a ele. Os próprios parentes de Lavínia confirmaram que a moça já não mais estava contente com seu casamento.

Os irmãos afirmaram que a moça se queixava muito do marido ultimamente, relatando que ele a tratava como uma empregada, não tinha com ele cumplicidade e a culpava pelo fato de não poderem ter filhos, o que entristecia em muito Lavínia, eis que a moça sempre alimentara o sonho de ter filhos. Além do mais, o marido tinha hábitos estranhos desafetos à vida do casal. Tinha um comportamento extremamente separatista e muitas vezes agressivo, refletido em meio a todos. Kleber não escolhia lugar para dar suas conhecidas “patadas” em Lavínia. Ela, por sua vez sentia-se responsável por Kleber e por essa razão não haviam se divorciado até então.

Kleber era um tipo peculiar e complicado de ser humano. Ensimesmado e vitimizado, não aceitava opiniões contrárias à sua, reagindo, na maioria das vezes de forma agressiva e desproporcional.

Isso assustava não só os que com eles conviviam, mas também os vizinhos que muitas vezes acabavam sendo testemunhas forçadas dos atos de agressão verbal desproporcionais intentados por Kleber, que não media esforços em humilhar a esposa e reduzi-la à condição de lixo.

A família entendia esse lado de Lavínia preservacionista, pois a moça sempre tivera a estrutura familiar que sempre necessitou. Mas Kleber não, nunca teve tal suporte por parte dos seus. Era uma alma solitária no mundo e, por essa razão a moça sentia que tinha certa responsabilidade em relação ao marido.

Um fato que era até então desconhecido de muitos: Lavínia vinha fazendo terapia para encarar o divórcio e poder aceitar o rompimento de forma mais natural e sem muitos traumas, culpas e responsabilidades.

Por fim, após as investigações e colheita de todos os depoimentos, o inquérito policial fora relatado e entregue ao Ministério Público.

De posse de todos esses dados, o Promotor de Justiça estava plenamente convencido que o marido matara Lavínia, o que, pressentindo o divórcio iminente e não concordando com tal decisão, resolvera tirar a vida da esposa.

O entendimento do promotor baseou-se no fato das brigas e do comportamento inadequado apresentado pelo marido, o que foi efusivamente confirmado pelos familiares. Ausente qualquer dúvida, Kleber fora denunciado como o autor do assassinato de Lavínia.

Apesar de tudo, Kleber tentou se defender, mas fora brindado com o péssimo advogado (amigo de família) que pouco dera atenção ao seu caso, Na verdade ele próprio (advogado) pouco estava convencido as inocência de seu cliente. Era amigo do casal e, no afã de fazer um favor a Kleber, acabou por empurrar o caso “com a barriga”.

Ao longo do processo, no entanto, em sua autodefesa, Kleber tentara argumentar que nunca teve motivos para matar a esposa, dizendo repetidamente e, muitas vezes em prantos, que a amava e coisas do tipo.

Tudo ficava mais complicado, pois Kleber tinha uma doença que vinha se agravando ao longo do tempo, o que demandava cuidados específicos e constantes. Quando tinha 30 anos fora diagnosticado com câncer de intestino e, nessa altura dos acontecimentos, com pouco dinheiro, tempo, disposição psicológica e com um processo de metástase em andamento, Kleber sabia que provar sua inocência talvez fosse a única coisa que pudesse fazer antes de morrer. Queria partir, ao menos, com a honra imaculada.

Mas naquele momento era difícil encontrar desfecho diverso do visto até então.

Depois de todo o processo criminal, Kleber fora pronunciado, sendo enviado a julgamento pelo Tribunal do Júri.

A preocupação de Kleber agora mudara totalmente. Apesar de ter respondido ao processo todo em liberdade, já percebia que isso poderia mudar a qualquer momento. O que até então era preocupação em provar a inocência e mostrar o quanto amava a esposa, passou a ser o temor pela perda da liberdade e pelos últimos momentos de vida que ainda teria.

Seria muito fácil e cômodo apenas esperar a morte chegar, o que era uma coisa certa e que poderia ocorrer a qualquer momento, pelo andar da carruagem. Morrendo, acabaria o processo. Mas decidiu lutar pela inocência como sendo um último suspiro de vida que ainda lhe restava, apesar de debilitado demais para tanto.

Decidiu, então, trocar de advogado. Dessa vez não aceitou a indicação de um “amigo de família” e usou as ultimas economias que lhe restavam e contratou um bom advogado na cidade de São Paulo, mesmo colocando sua saúde em segundo plano. Interrompeu todo o tratamento e dedicou suas ultimas forças a isso.

Uma das primeiras medidas tomadas pelo novo advogado por ele foi examinar o laptop de Lavínia, no que até então ninguém tinha pensado. Era preciso descobrir o que acontecera e tentar desvendar o crime que, na cabeça de Kleber estava até então inconcluso.

Após o computador ser submetido à perícia, com autorização judicial, foi possível acessar o “email” pessoal de Lavínia e, lá estava a resposta para tudo o que até então estava “tão certo” na cabeça de todos. Descobriu-se que Lavínia estava se relacionando com outra pessoa e que pensava em se divorciar, mas não tivera coragem. Segue o conteúdo do email:

Meu amor. Eu sei que toda essa nossa situação está sendo difícil de suportar, eu sei disso melhor do que ninguém. Venho passado por um verdadeiro inferno na minha vida e ninguém jamais entenderá o que estou prestes a fazer. Sinto-me responsável por Kleber e sinto que me separar dele agora seria abandona-lo sem muitas esperanças. Não conseguiria conviver com isso. Ele está com uma doença que demanda tratamento constante e eu não conseguiria abandona-lo agora. Ao mesmo tempo eu não consigo viver longe de você. Você devolveu toda a vida que eu deixei de lado quando resolvi que deveria casar com ele. Ao longo de todos esses anos eu nunca fui feliz. Sempre quando decidia me separar dele, algo acontecia. Daí apareceu você, me dando uma nova vida para seguir adiante, enfrentando a infelicidade a qual me submeti por todos esses anos. Não consigo viver longe de você. Quero ter filhos com você, ter uma vida de verdade. Ele jamais entenderia isso. Aliás, ninguém entenderia. Ninguém entenderia o fato de eu nunca ter uma vida de casada, uma pessoa que tivesse cumplicidade, que não fosse tão separatista, que respeitasse minhas escolhas. Que me acompanhasse e não me tratasse como uma qualquer. Que estivesse do meu lado quando eu estivesse triste ao invés de me tratar com desprezo. Ainda assim eu, erroneamente, ainda me sinto responsável por ele. Apesar de todos os desaforos que venho passando ao longo dos meus dias. Mas aí aparece você na minha vida, dando-me novas esperanças e devolvendo o sentido do amor. Você apareceu de uma forma tão avassaladora que eu não sei o que fazer daqui para frente. Quero ficar com você mas sou covarde o bastante para largar meu marido nesse momento, ainda mais com ele doente. Por essa razão, meu amor, perdoe-me pelo meu ato de desespero. Escolhi a solução dos covardes pois, não consigo mais viver com meu marido e, ao mesmo tempo, não consigo mais viver sem você. Mas, mesmo assim, não tenho coragem de dar o ultimo pontapé nas costas de quem já está à beira do abismo. Adeus meu amor, saiba que até a última gota de veneno que tomar conta do meu corpo e na vida eterna que me espera depois disso, meu pensamento estará em você. Te amo, Lavínia.”

 Ainda atônito, após um tempo em silêncio, Kleber pediu que seu advogado apresentasse a prova em plenário a fim de conseguir a comprovação de que não matara a esposa.

Mas ele sabia que de certa forma havia matado. Por não ter sido o marido que ela merecera. A fraqueza de Lavínia refletia as atitudes de Kleber. Se tivesse dado a atenção que a esposa merecia isso tudo hoje não estaria acontecendo com ele.

O desfecho da história?

Bom, não é difícil de se imaginar que Kleber foi absolvido. Porém, dois meses depois, debilitado e com poucos recursos, veio a falecer, sozinho, em um quarto de pensão no centro da cidade, sendo encontrado dois dias depois já em um estado lastimável.

Mas a moral da história aqui, no meu modo de entender, não se resumiria a “a mulher foi uma vaca em trair o marido” ou “tinha mais que tomar chifre mesmo”, muito menos “ela foi fraca e idiota de não ter separado”.

O que está em jogo aqui é a ideia de que o que se passa na cabeça dos outros nós não sabemos e jamais saberemos um dia.

Mas não é só!

Além de tudo isso, devemos repensar muitas atitudes da nossa vida enquanto podemos, enquanto temos tempo para tanto.

Kleber pensou nisso? Certamente que não, na medida em que tratava a mulher como uma “qualquer” e pouca atenção dava a ela.

Lavínia pensou nisso? Também não, ao passo que se casou com Kleber pensando que poderia salvar a vida dele entregando a sua. Ninguém é responsável por ninguém.

Ninguém tem o controle da vida de ninguém.

Lavínia sempre fora livre para escolher destino diverso do que teve. Só precisava de mais dez minutos de vida para enxergar isso.

Quando percebeu que encontrara o amor da sua vida, olhou em volta e viu que estava presa em uma redoma e que não via chances de sair.

Mal sabia ela que ela mesma poderia remover aquela redoma e voar para onde quisesse.

Kleber, por sua vez, tentou sempre comandar tanto a relação que esqueceu que um casamento é feito, antes de tudo, de cumplicidade, união e vida em comum. E não que a casa é como uma equipe ou uma empresa, que precisa sempre de um líder. O problema maior de Kleber foi trazer para seu casamento todos os problemas que tivera com sua família e o fato de ser sempre, de certa forma, independente. Pouco ligava para o fato da mulher estar ao seu lado, afinal, “foda-se” ele poderia sempre se virar sozinho, como fizera a vida toda.

Na verdade, o que eles tinham não era um casamento, mas sim um relacionamento qualquer, despido de qualquer amor ou cumplicidade.

Mas agora era tarde, Lavínia estava morta e Kleber morreu lutando.

Nada mais poderia ser feito.