“LAVÍNIA”
Era mais um final de expediente como outro
qualquer, apesar de estressante nada muito fora da rotina normal.
Lavínia saía da empresa com as amigas de trabalho.
Sempre muito alegre, conseguia fazer com que todas sorrissem com ela, desde as
mais fechadas e grossas até as mais espirituosas. De fato, tinha o dom único de
impor sua simpatia sem muito esforço. Talvez esse fosse o principal motivo pelo
qual todos gostavam dela e a respeitavam.
Tinha um excelente cargo numa empresa, conquistado
após muito esforço e dedicação. Um emprego por muitos almejado, mas por poucos
alcançado. Conseguia se destacar em tudo o que fazia.
Casada, tinha seu lar e pouco saía com as amigas.
Era muito caseira e se dava muito bem com o marido.
Kleber era uma pessoa de difícil trato, de criação
conservadora e ideias ultrapassadas, não tinha lá seu entendimento das coisas.
Apreciavam coisas diferentes e, a partir disso,
tinham seus desentendimentos, mas nada muito grave aos olhos dos outros.
Levava uma vida acima da média para alguém de seus
trinta e poucos anos.
Talvez todos esses dados tenham causado o espanto
nas amigas de Lavínia quando, logo na manhã seguinte, souberam que a amiga fora
encontrada pelo marido, sem vida.
Não poderiam imaginar aquele rosto tão sereno, belo
e compassivo, agora gélido e sem cor, seria acariciado pelos longos e
impiedosos dedos da morte.
Ninguém sabia como, nem por qual razão, não
poderiam mais contar com o sorriso e o espirito que a todos contagiava. A morte
de Lavínia, nas circunstâncias em que ocorreu, era, além de uma tristeza
infinita, um grande choque para todos!
Uma morte tão repentina e sob circunstâncias estranhas.
Haveria alguma explicação para tudo isso! Como a
vida de Lavínia fora ceifada tão abruptamente?
Era essa a indagação de seus amigos quando chegaram
ao velório e se depararam com a cena dos irmãos abraçados com os pais da moça e
o marido em um segundo plano, completamente entregue à dor.
O próprio Kleber tinha poucas palavras naquele
momento. Preferiu o isolamento. A dor que só os irmãos e os pais poderiam sentir
os corroía naquele momento. Lidar com a ausência de quem mais amavam seria,
para o resto de suas vidas, seu maior pesadelo.
A comoção se arrastou por algum tempo, ainda depois
do funeral.
É difícil substituir o vazio que mesmo a pior das
pessoas causa na vida do ser humano, quiçá de alguém aparentemente tão querido
como Lavínia!
Ninguém sabia como tudo aquilo teria acontecido e ninguém
sabia ao certo o que teria acontecido para que Lavínia tivesse partido daquela
forma.
Um mês se passou desde sua morte e, até então ninguém
sabia a causa da morte, até que mais uma bomba explode em meio àqueles que com
ela conviveram: Lavínia havia sido envenenada!
Mas...como? Quem? Por qual razão? Após a morte de
Lavínia, a qual teria ocorrido por circunstâncias até então misteriosas, uma
necropsia foi efetuada no corpo, onde foram encontrados resquícios de veneno usado
para ratos, emaranhado em restos de comida ainda intactos no estomago da moça.
Por óbvio após tal resultado da perícia, a polícia começou uma criteriosa investigação,
cujo cenário foi a casa onde o casal residia.
Depois de uma varredura em todos os cômodos, foi
encontrado um frasco com veneno de rato. Tal material foi apreendido e levado
para análise.
A polícia científica, por fim, concluiu que se
tratava do mesmo veneno que matara Lavínia. Restava agora descobrir por qual
razão aquele veneno havia parado no estomago da moça. E esse era o próximo
passo a ser tomado pela polícia rumo ao mais aterrador de todos os desfechos
esperados pelas pessoas que conviveram com a moça ao longo de toda a sua vida.
Após muita investigação, o depoimento de um dos
vizinhos reforçou a suspeita que os policiais alimentavam. O vizinho de frente
havia presenciado inúmeras vezes discussões entre Kleber e Lavínia. Ouvira,
ainda, por diversas vezes, Lavínia pranteando sozinha, após Kleber deixar o
apartamento, aparentemente enfurecido, batendo as portas, jogando as coisas
pelo caminho e quebrando o que encontrava pela frente.
Daí a presunção de que o veneno não andara sozinho
até o prato de Lavínia. Tinham convicção plena de que a moça havia sido envenenada
pelo marido.
Kleber, no entanto, durante toda a fase
investigatória, permaneceu firme na ideia de que não matara a esposa, não teria
ele motivos para tanto. Pelo contrário! Sofria com a ausência da mulher e ainda
mais por saber que estava sendo acusado de tirar a vida de quem tanto amava.
Mas a prova era desfavorável a ele. Os próprios
parentes de Lavínia confirmaram que a moça já não mais estava contente com seu
casamento.
Os irmãos afirmaram que a moça se queixava muito do
marido ultimamente, relatando que ele a tratava como uma empregada, não tinha
com ele cumplicidade e a culpava pelo fato de não poderem ter filhos, o que
entristecia em muito Lavínia, eis que a moça sempre alimentara o sonho de ter
filhos. Além do mais, o marido tinha hábitos estranhos desafetos à vida do
casal. Tinha um comportamento extremamente separatista e muitas vezes
agressivo, refletido em meio a todos. Kleber não escolhia lugar para dar suas
conhecidas “patadas” em Lavínia. Ela, por sua vez sentia-se responsável por
Kleber e por essa razão não haviam se divorciado até então.
Kleber era um tipo peculiar e complicado de ser
humano. Ensimesmado e vitimizado, não aceitava opiniões contrárias à sua,
reagindo, na maioria das vezes de forma agressiva e desproporcional.
Isso assustava não só os que com eles conviviam,
mas também os vizinhos que muitas vezes acabavam sendo testemunhas forçadas dos
atos de agressão verbal desproporcionais intentados por Kleber, que não media
esforços em humilhar a esposa e reduzi-la à condição de lixo.
A família entendia esse lado de Lavínia
preservacionista, pois a moça sempre tivera a estrutura familiar que sempre
necessitou. Mas Kleber não, nunca teve tal suporte por parte dos seus. Era uma
alma solitária no mundo e, por essa razão a moça sentia que tinha certa
responsabilidade em relação ao marido.
Um fato que era até então desconhecido de muitos:
Lavínia vinha fazendo terapia para encarar o divórcio e poder aceitar o rompimento
de forma mais natural e sem muitos traumas, culpas e responsabilidades.
Por fim, após as investigações e colheita de todos
os depoimentos, o inquérito policial fora relatado e entregue ao Ministério
Público.
De posse de todos esses dados, o Promotor de
Justiça estava plenamente convencido que o marido matara Lavínia, o que,
pressentindo o divórcio iminente e não concordando com tal decisão, resolvera
tirar a vida da esposa.
O entendimento do promotor baseou-se no fato das
brigas e do comportamento inadequado apresentado pelo marido, o que foi
efusivamente confirmado pelos familiares. Ausente qualquer dúvida, Kleber fora
denunciado como o autor do assassinato de Lavínia.
Apesar de tudo, Kleber tentou se defender, mas fora
brindado com o péssimo advogado (amigo de família) que pouco dera atenção ao
seu caso, Na verdade ele próprio (advogado) pouco estava convencido as inocência
de seu cliente. Era amigo do casal e, no afã de fazer um favor a Kleber, acabou
por empurrar o caso “com a barriga”.
Ao longo do processo, no entanto, em sua
autodefesa, Kleber tentara argumentar que nunca teve motivos para matar a
esposa, dizendo repetidamente e, muitas vezes em prantos, que a amava e coisas
do tipo.
Tudo ficava mais complicado, pois Kleber tinha uma
doença que vinha se agravando ao longo do tempo, o que demandava cuidados
específicos e constantes. Quando tinha 30 anos fora diagnosticado com câncer de
intestino e, nessa altura dos acontecimentos, com pouco dinheiro, tempo,
disposição psicológica e com um processo de metástase em andamento, Kleber
sabia que provar sua inocência talvez fosse a única coisa que pudesse fazer
antes de morrer. Queria partir, ao menos, com a honra imaculada.
Mas naquele momento era difícil encontrar desfecho
diverso do visto até então.
Depois de todo o processo criminal, Kleber fora
pronunciado, sendo enviado a julgamento pelo Tribunal do Júri.
A preocupação de Kleber agora mudara totalmente.
Apesar de ter respondido ao processo todo em liberdade, já percebia que isso
poderia mudar a qualquer momento. O que até então era preocupação em provar a
inocência e mostrar o quanto amava a esposa, passou a ser o temor pela perda da
liberdade e pelos últimos momentos de vida que ainda
teria.
Seria muito fácil e cômodo apenas esperar a morte
chegar, o que era uma coisa certa e que poderia ocorrer a qualquer momento,
pelo andar da carruagem. Morrendo, acabaria o processo. Mas decidiu lutar pela
inocência como sendo um último suspiro de vida que ainda lhe restava, apesar de
debilitado demais para tanto.
Decidiu, então, trocar de advogado. Dessa vez não
aceitou a indicação de um “amigo de família” e usou as ultimas economias que
lhe restavam e contratou um bom advogado na cidade de São Paulo, mesmo
colocando sua saúde em segundo plano. Interrompeu todo o tratamento e dedicou suas
ultimas forças a isso.
Uma das primeiras medidas tomadas pelo novo
advogado por ele foi examinar o laptop de Lavínia, no que até então ninguém tinha
pensado. Era preciso descobrir o que acontecera e tentar desvendar o crime que,
na cabeça de Kleber estava até então inconcluso.
Após o computador ser submetido à perícia, com
autorização judicial, foi possível acessar o “email” pessoal de Lavínia e, lá
estava a resposta para tudo o que até então estava “tão certo” na cabeça de
todos. Descobriu-se que Lavínia estava se relacionando com outra pessoa e que
pensava em se divorciar, mas não tivera coragem. Segue o conteúdo do email:
“Meu amor. Eu
sei que toda essa nossa situação está sendo difícil de suportar, eu sei disso
melhor do que ninguém. Venho passado por um verdadeiro inferno na minha vida e
ninguém jamais entenderá o que estou prestes a fazer. Sinto-me responsável por
Kleber e sinto que me separar dele agora seria abandona-lo sem muitas
esperanças. Não conseguiria conviver com isso. Ele está com uma doença que
demanda tratamento constante e eu não conseguiria abandona-lo agora. Ao mesmo
tempo eu não consigo viver longe de você. Você devolveu toda a vida que eu
deixei de lado quando resolvi que deveria casar com ele. Ao longo de todos
esses anos eu nunca fui feliz. Sempre quando decidia me separar dele, algo
acontecia. Daí apareceu você, me dando uma nova vida para seguir adiante,
enfrentando a infelicidade a qual me submeti por todos esses anos. Não consigo
viver longe de você. Quero ter filhos com você, ter uma vida de verdade. Ele
jamais entenderia isso. Aliás, ninguém entenderia. Ninguém entenderia o fato de
eu nunca ter uma vida de casada, uma pessoa que tivesse cumplicidade, que não
fosse tão separatista, que respeitasse minhas escolhas. Que me acompanhasse e
não me tratasse como uma qualquer. Que estivesse do meu lado quando eu
estivesse triste ao invés de me tratar com desprezo. Ainda assim eu,
erroneamente, ainda me sinto responsável por ele. Apesar de todos os desaforos
que venho passando ao longo dos meus dias. Mas aí aparece você na minha vida, dando-me
novas esperanças e devolvendo o sentido do amor. Você apareceu de uma forma tão
avassaladora que eu não sei o que fazer daqui para frente. Quero ficar com você
mas sou covarde o bastante para largar meu marido nesse momento, ainda mais com
ele doente. Por essa razão, meu amor, perdoe-me pelo meu ato de desespero.
Escolhi a solução dos covardes pois, não consigo mais viver com meu marido e,
ao mesmo tempo, não consigo mais viver sem você. Mas, mesmo assim, não tenho
coragem de dar o ultimo pontapé nas costas de quem já está à beira do abismo.
Adeus meu amor, saiba que até a última gota de veneno que tomar conta do meu
corpo e na vida eterna que me espera depois disso, meu pensamento estará em
você. Te amo, Lavínia.”
Ainda
atônito, após um tempo em silêncio, Kleber pediu que seu advogado apresentasse
a prova em plenário a fim de conseguir a comprovação de que não matara a esposa.
Mas ele sabia que de certa forma havia matado. Por
não ter sido o marido que ela merecera. A fraqueza de Lavínia refletia as
atitudes de Kleber. Se tivesse dado a atenção que a esposa merecia isso tudo
hoje não estaria acontecendo com ele.
O desfecho da história?
Bom, não é difícil de se imaginar que Kleber foi
absolvido. Porém, dois meses depois, debilitado e com poucos recursos, veio a
falecer, sozinho, em um quarto de pensão no centro da cidade, sendo encontrado
dois dias depois já em um estado lastimável.
Mas a moral da história aqui, no meu modo de
entender, não se resumiria a “a mulher foi uma vaca em trair o marido” ou
“tinha mais que tomar chifre mesmo”, muito menos “ela foi fraca e idiota de não
ter separado”.
O que está em jogo aqui é a ideia de que o que se
passa na cabeça dos outros nós não sabemos e jamais saberemos um dia.
Mas não é só!
Além de tudo isso, devemos repensar muitas atitudes
da nossa vida enquanto podemos, enquanto temos tempo para tanto.
Kleber pensou nisso? Certamente que não, na medida
em que tratava a mulher como uma “qualquer” e pouca atenção dava a ela.
Lavínia pensou nisso? Também não, ao passo que se casou
com Kleber pensando que poderia salvar a vida dele entregando a sua. Ninguém é
responsável por ninguém.
Ninguém tem o controle da vida de ninguém.
Lavínia sempre fora livre para escolher destino
diverso do que teve. Só precisava de mais dez minutos de vida para enxergar
isso.
Quando percebeu que encontrara o amor da sua vida,
olhou em volta e viu que estava presa em uma redoma e que não via chances de
sair.
Mal sabia ela que ela mesma poderia remover aquela
redoma e voar para onde quisesse.
Kleber, por sua vez, tentou sempre comandar tanto a
relação que esqueceu que um casamento é feito, antes de tudo, de cumplicidade, união
e vida em comum. E não que a casa é como uma equipe ou uma empresa, que precisa
sempre de um líder. O problema maior de Kleber foi trazer para seu casamento
todos os problemas que tivera com sua família e o fato de ser sempre, de certa
forma, independente. Pouco ligava para o fato da mulher estar ao seu lado,
afinal, “foda-se” ele poderia sempre se virar sozinho, como fizera a vida toda.
Na verdade, o que eles tinham não era um casamento,
mas sim um relacionamento qualquer, despido de qualquer amor ou cumplicidade.
Mas agora era tarde, Lavínia estava morta e Kleber
morreu lutando.
Nada mais poderia ser feito.