quarta-feira, 12 de novembro de 2014


“LAVÍNIA”

 

 

Era mais um final de expediente como outro qualquer, apesar de estressante nada muito fora da rotina normal.

Lavínia saía da empresa com as amigas de trabalho. Sempre muito alegre, conseguia fazer com que todas sorrissem com ela, desde as mais fechadas e grossas até as mais espirituosas. De fato, tinha o dom único de impor sua simpatia sem muito esforço. Talvez esse fosse o principal motivo pelo qual todos gostavam dela e a respeitavam.

Tinha um excelente cargo numa empresa, conquistado após muito esforço e dedicação. Um emprego por muitos almejado, mas por poucos alcançado. Conseguia se destacar em tudo o que fazia.

Casada, tinha seu lar e pouco saía com as amigas. Era muito caseira e se dava muito bem com o marido.

Kleber era uma pessoa de difícil trato, de criação conservadora e ideias ultrapassadas, não tinha lá seu entendimento das coisas.

Apreciavam coisas diferentes e, a partir disso, tinham seus desentendimentos, mas nada muito grave aos olhos dos outros.

Levava uma vida acima da média para alguém de seus trinta e poucos anos.

Talvez todos esses dados tenham causado o espanto nas amigas de Lavínia quando, logo na manhã seguinte, souberam que a amiga fora encontrada pelo marido, sem vida.

Não poderiam imaginar aquele rosto tão sereno, belo e compassivo, agora gélido e sem cor, seria acariciado pelos longos e impiedosos dedos da morte.

Ninguém sabia como, nem por qual razão, não poderiam mais contar com o sorriso e o espirito que a todos contagiava. A morte de Lavínia, nas circunstâncias em que ocorreu, era, além de uma tristeza infinita, um grande choque para todos!

Uma morte tão repentina e sob circunstâncias estranhas.

Haveria alguma explicação para tudo isso! Como a vida de Lavínia fora ceifada tão abruptamente?

Era essa a indagação de seus amigos quando chegaram ao velório e se depararam com a cena dos irmãos abraçados com os pais da moça e o marido em um segundo plano, completamente entregue à dor.

O próprio Kleber tinha poucas palavras naquele momento. Preferiu o isolamento. A dor que só os irmãos e os pais poderiam sentir os corroía naquele momento. Lidar com a ausência de quem mais amavam seria, para o resto de suas vidas, seu maior pesadelo.

A comoção se arrastou por algum tempo, ainda depois do funeral.

É difícil substituir o vazio que mesmo a pior das pessoas causa na vida do ser humano, quiçá de alguém aparentemente tão querido como Lavínia!

Ninguém sabia como tudo aquilo teria acontecido e ninguém sabia ao certo o que teria acontecido para que Lavínia tivesse partido daquela forma.

Um mês se passou desde sua morte e, até então ninguém sabia a causa da morte, até que mais uma bomba explode em meio àqueles que com ela conviveram: Lavínia havia sido envenenada!

Mas...como? Quem? Por qual razão? Após a morte de Lavínia, a qual teria ocorrido por circunstâncias até então misteriosas, uma necropsia foi efetuada no corpo, onde foram encontrados resquícios de veneno usado para ratos, emaranhado em restos de comida ainda intactos no estomago da moça. Por óbvio após tal resultado da perícia, a polícia começou uma criteriosa investigação, cujo cenário foi a casa onde o casal residia.

Depois de uma varredura em todos os cômodos, foi encontrado um frasco com veneno de rato. Tal material foi apreendido e levado para análise.

A polícia científica, por fim, concluiu que se tratava do mesmo veneno que matara Lavínia. Restava agora descobrir por qual razão aquele veneno havia parado no estomago da moça. E esse era o próximo passo a ser tomado pela polícia rumo ao mais aterrador de todos os desfechos esperados pelas pessoas que conviveram com a moça ao longo de toda a sua vida.

Após muita investigação, o depoimento de um dos vizinhos reforçou a suspeita que os policiais alimentavam. O vizinho de frente havia presenciado inúmeras vezes discussões entre Kleber e Lavínia. Ouvira, ainda, por diversas vezes, Lavínia pranteando sozinha, após Kleber deixar o apartamento, aparentemente enfurecido, batendo as portas, jogando as coisas pelo caminho e quebrando o que encontrava pela frente.

Daí a presunção de que o veneno não andara sozinho até o prato de Lavínia. Tinham convicção plena de que a moça havia sido envenenada pelo marido.

Kleber, no entanto, durante toda a fase investigatória, permaneceu firme na ideia de que não matara a esposa, não teria ele motivos para tanto. Pelo contrário! Sofria com a ausência da mulher e ainda mais por saber que estava sendo acusado de tirar a vida de quem tanto amava.

Mas a prova era desfavorável a ele. Os próprios parentes de Lavínia confirmaram que a moça já não mais estava contente com seu casamento.

Os irmãos afirmaram que a moça se queixava muito do marido ultimamente, relatando que ele a tratava como uma empregada, não tinha com ele cumplicidade e a culpava pelo fato de não poderem ter filhos, o que entristecia em muito Lavínia, eis que a moça sempre alimentara o sonho de ter filhos. Além do mais, o marido tinha hábitos estranhos desafetos à vida do casal. Tinha um comportamento extremamente separatista e muitas vezes agressivo, refletido em meio a todos. Kleber não escolhia lugar para dar suas conhecidas “patadas” em Lavínia. Ela, por sua vez sentia-se responsável por Kleber e por essa razão não haviam se divorciado até então.

Kleber era um tipo peculiar e complicado de ser humano. Ensimesmado e vitimizado, não aceitava opiniões contrárias à sua, reagindo, na maioria das vezes de forma agressiva e desproporcional.

Isso assustava não só os que com eles conviviam, mas também os vizinhos que muitas vezes acabavam sendo testemunhas forçadas dos atos de agressão verbal desproporcionais intentados por Kleber, que não media esforços em humilhar a esposa e reduzi-la à condição de lixo.

A família entendia esse lado de Lavínia preservacionista, pois a moça sempre tivera a estrutura familiar que sempre necessitou. Mas Kleber não, nunca teve tal suporte por parte dos seus. Era uma alma solitária no mundo e, por essa razão a moça sentia que tinha certa responsabilidade em relação ao marido.

Um fato que era até então desconhecido de muitos: Lavínia vinha fazendo terapia para encarar o divórcio e poder aceitar o rompimento de forma mais natural e sem muitos traumas, culpas e responsabilidades.

Por fim, após as investigações e colheita de todos os depoimentos, o inquérito policial fora relatado e entregue ao Ministério Público.

De posse de todos esses dados, o Promotor de Justiça estava plenamente convencido que o marido matara Lavínia, o que, pressentindo o divórcio iminente e não concordando com tal decisão, resolvera tirar a vida da esposa.

O entendimento do promotor baseou-se no fato das brigas e do comportamento inadequado apresentado pelo marido, o que foi efusivamente confirmado pelos familiares. Ausente qualquer dúvida, Kleber fora denunciado como o autor do assassinato de Lavínia.

Apesar de tudo, Kleber tentou se defender, mas fora brindado com o péssimo advogado (amigo de família) que pouco dera atenção ao seu caso, Na verdade ele próprio (advogado) pouco estava convencido as inocência de seu cliente. Era amigo do casal e, no afã de fazer um favor a Kleber, acabou por empurrar o caso “com a barriga”.

Ao longo do processo, no entanto, em sua autodefesa, Kleber tentara argumentar que nunca teve motivos para matar a esposa, dizendo repetidamente e, muitas vezes em prantos, que a amava e coisas do tipo.

Tudo ficava mais complicado, pois Kleber tinha uma doença que vinha se agravando ao longo do tempo, o que demandava cuidados específicos e constantes. Quando tinha 30 anos fora diagnosticado com câncer de intestino e, nessa altura dos acontecimentos, com pouco dinheiro, tempo, disposição psicológica e com um processo de metástase em andamento, Kleber sabia que provar sua inocência talvez fosse a única coisa que pudesse fazer antes de morrer. Queria partir, ao menos, com a honra imaculada.

Mas naquele momento era difícil encontrar desfecho diverso do visto até então.

Depois de todo o processo criminal, Kleber fora pronunciado, sendo enviado a julgamento pelo Tribunal do Júri.

A preocupação de Kleber agora mudara totalmente. Apesar de ter respondido ao processo todo em liberdade, já percebia que isso poderia mudar a qualquer momento. O que até então era preocupação em provar a inocência e mostrar o quanto amava a esposa, passou a ser o temor pela perda da liberdade e pelos últimos momentos de vida que ainda teria.

Seria muito fácil e cômodo apenas esperar a morte chegar, o que era uma coisa certa e que poderia ocorrer a qualquer momento, pelo andar da carruagem. Morrendo, acabaria o processo. Mas decidiu lutar pela inocência como sendo um último suspiro de vida que ainda lhe restava, apesar de debilitado demais para tanto.

Decidiu, então, trocar de advogado. Dessa vez não aceitou a indicação de um “amigo de família” e usou as ultimas economias que lhe restavam e contratou um bom advogado na cidade de São Paulo, mesmo colocando sua saúde em segundo plano. Interrompeu todo o tratamento e dedicou suas ultimas forças a isso.

Uma das primeiras medidas tomadas pelo novo advogado por ele foi examinar o laptop de Lavínia, no que até então ninguém tinha pensado. Era preciso descobrir o que acontecera e tentar desvendar o crime que, na cabeça de Kleber estava até então inconcluso.

Após o computador ser submetido à perícia, com autorização judicial, foi possível acessar o “email” pessoal de Lavínia e, lá estava a resposta para tudo o que até então estava “tão certo” na cabeça de todos. Descobriu-se que Lavínia estava se relacionando com outra pessoa e que pensava em se divorciar, mas não tivera coragem. Segue o conteúdo do email:

Meu amor. Eu sei que toda essa nossa situação está sendo difícil de suportar, eu sei disso melhor do que ninguém. Venho passado por um verdadeiro inferno na minha vida e ninguém jamais entenderá o que estou prestes a fazer. Sinto-me responsável por Kleber e sinto que me separar dele agora seria abandona-lo sem muitas esperanças. Não conseguiria conviver com isso. Ele está com uma doença que demanda tratamento constante e eu não conseguiria abandona-lo agora. Ao mesmo tempo eu não consigo viver longe de você. Você devolveu toda a vida que eu deixei de lado quando resolvi que deveria casar com ele. Ao longo de todos esses anos eu nunca fui feliz. Sempre quando decidia me separar dele, algo acontecia. Daí apareceu você, me dando uma nova vida para seguir adiante, enfrentando a infelicidade a qual me submeti por todos esses anos. Não consigo viver longe de você. Quero ter filhos com você, ter uma vida de verdade. Ele jamais entenderia isso. Aliás, ninguém entenderia. Ninguém entenderia o fato de eu nunca ter uma vida de casada, uma pessoa que tivesse cumplicidade, que não fosse tão separatista, que respeitasse minhas escolhas. Que me acompanhasse e não me tratasse como uma qualquer. Que estivesse do meu lado quando eu estivesse triste ao invés de me tratar com desprezo. Ainda assim eu, erroneamente, ainda me sinto responsável por ele. Apesar de todos os desaforos que venho passando ao longo dos meus dias. Mas aí aparece você na minha vida, dando-me novas esperanças e devolvendo o sentido do amor. Você apareceu de uma forma tão avassaladora que eu não sei o que fazer daqui para frente. Quero ficar com você mas sou covarde o bastante para largar meu marido nesse momento, ainda mais com ele doente. Por essa razão, meu amor, perdoe-me pelo meu ato de desespero. Escolhi a solução dos covardes pois, não consigo mais viver com meu marido e, ao mesmo tempo, não consigo mais viver sem você. Mas, mesmo assim, não tenho coragem de dar o ultimo pontapé nas costas de quem já está à beira do abismo. Adeus meu amor, saiba que até a última gota de veneno que tomar conta do meu corpo e na vida eterna que me espera depois disso, meu pensamento estará em você. Te amo, Lavínia.”

 Ainda atônito, após um tempo em silêncio, Kleber pediu que seu advogado apresentasse a prova em plenário a fim de conseguir a comprovação de que não matara a esposa.

Mas ele sabia que de certa forma havia matado. Por não ter sido o marido que ela merecera. A fraqueza de Lavínia refletia as atitudes de Kleber. Se tivesse dado a atenção que a esposa merecia isso tudo hoje não estaria acontecendo com ele.

O desfecho da história?

Bom, não é difícil de se imaginar que Kleber foi absolvido. Porém, dois meses depois, debilitado e com poucos recursos, veio a falecer, sozinho, em um quarto de pensão no centro da cidade, sendo encontrado dois dias depois já em um estado lastimável.

Mas a moral da história aqui, no meu modo de entender, não se resumiria a “a mulher foi uma vaca em trair o marido” ou “tinha mais que tomar chifre mesmo”, muito menos “ela foi fraca e idiota de não ter separado”.

O que está em jogo aqui é a ideia de que o que se passa na cabeça dos outros nós não sabemos e jamais saberemos um dia.

Mas não é só!

Além de tudo isso, devemos repensar muitas atitudes da nossa vida enquanto podemos, enquanto temos tempo para tanto.

Kleber pensou nisso? Certamente que não, na medida em que tratava a mulher como uma “qualquer” e pouca atenção dava a ela.

Lavínia pensou nisso? Também não, ao passo que se casou com Kleber pensando que poderia salvar a vida dele entregando a sua. Ninguém é responsável por ninguém.

Ninguém tem o controle da vida de ninguém.

Lavínia sempre fora livre para escolher destino diverso do que teve. Só precisava de mais dez minutos de vida para enxergar isso.

Quando percebeu que encontrara o amor da sua vida, olhou em volta e viu que estava presa em uma redoma e que não via chances de sair.

Mal sabia ela que ela mesma poderia remover aquela redoma e voar para onde quisesse.

Kleber, por sua vez, tentou sempre comandar tanto a relação que esqueceu que um casamento é feito, antes de tudo, de cumplicidade, união e vida em comum. E não que a casa é como uma equipe ou uma empresa, que precisa sempre de um líder. O problema maior de Kleber foi trazer para seu casamento todos os problemas que tivera com sua família e o fato de ser sempre, de certa forma, independente. Pouco ligava para o fato da mulher estar ao seu lado, afinal, “foda-se” ele poderia sempre se virar sozinho, como fizera a vida toda.

Na verdade, o que eles tinham não era um casamento, mas sim um relacionamento qualquer, despido de qualquer amor ou cumplicidade.

Mas agora era tarde, Lavínia estava morta e Kleber morreu lutando.

Nada mais poderia ser feito.

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