quarta-feira, 6 de abril de 2016


CONFRARIA DOS ILUMINADOS

 

 

 

Vidas começam e terminam todos os dias. Umas mais brevemente do que outras, mas o ciclo sempre chega ao fim. As circunstancias em que uma pessoa deixa de existir ainda estão além da compreensão do mais cético dos seres humanos.  

O que vocês estão prestes a ler é o relato sórdido de uma morte sem culpados. Ao menos aparentes. Pois toda morte que não seja natural, é ocasionada por alguém.

Conheçam o jovem Fernando, 19 anos, que acabou de ingressar na faculdade de direito carregando consigo o sonho de se tornar Juiz. Prodígio, desde sempre procurou adquirir o máximo de conhecimento que a mente humana fosse capaz de absorver.

Tinha poucos amigos e, já na primeira semana de aula conheceu o oposto de sua personalidade quando Pedro, atrasado, entrou na sala de aula.

Pouco compromissado com regras, Pedro era totalmente diferente de Fernando. Desregrado, pouco estudava e vivia às custas dos colegas para entender o suficiente e ir bem nas provas, quase sempre surpresas para ele mesmo que nunca tinha em mãos o calendário passado pelos professores.

- Tem alguém sentado aqui? – perguntou Pedro a Fernando, já com a aula em andamento.

- Não. – disse o monossilábico Fernando que só queria prestar atenção naquela “maravilhosa” aula de teoria geral do estado que acabara de começar.

A aula por si só já era maçante. O professor, por sua vez, deixava tudo mais difícil. Era daqueles homens de meia idade que parecia ter estacionado nos anos 20: gravata borboleta e suspensório eram seu uniforme e as aulas, carregadas de teoria, se arrastavam até que soasse o sinal do intervalo.

E saiam correndo como se fugissem de um abatedouro, rumo à lanchonete. Naquele momento havia começado uma amizade que durou a vida toda.

Pedro aproximou-se de Fernando e, com um jeito despojado que chamou a atenção disse:

- Porra “véio”, aula chata do Caralho! O professor parece o boneco assassino.

Fernando sorriu. Apesar de não estar acostumado com aquele tipo de linguajar sentia-se a vontade pela primeira vez naquele universo onde acabara de pisar. Tudo era novo e sabia que precisava de amigos, não era possível sobreviver sozinho naquela selva. Foi então que percebeu que entre os livros que Pedro carregava estava um exemplar d´O Iluminado de Stephen King. Fernando era simplesmente apaixonado por contos e estórias de suspense, tendo no mestre King sua referencia mais forte.

- "Tudo bem mamãe, eu sei o que é canibalismo, eu já vi isso na tv."  - disse Fernando com um sorriso entreaberto.

- Vai se foder moleque! Você conhece essa porra também???? Mano! Jamais imaginei que ia achar um fã dessas merdas por aqui! – respondeu Pedro extasiado por ter encontrado um amigo que compartilhasse com ele o amor pelo suspense e pelo terror.

Naquele momento nascia a “Confraria dos Iluminados”, um grupo de alunos daquela faculdade de direito que se reuniam todos os sábados para discutir as obras de Stephen King. Cada um era responsável por um conto, livro ou estória. Liam e discutiam arduamente até perderem a hora de ir para casa.

Fernando incumbiu-se da “Janela Secreta”, um dos contos mais psicologicamente perturbadores que já foi feito. Era seu preferido.

Depois revezavam até que todos tivessem lido tudo o que já foi produzido pelo mestre King.

E assim passaram os anos, tendo os jovens garotos aquela válvula de escape que os fez sobreviver aos árduos dias de acadêmicos naquela faculdade.

Após a graduação, muito embora cada um tivesse seguido sua carreira, sempre arranjavam um tempo para a reunião da Confraria que sempre rediscutia a obra de Stephen King.

O tempo foi passando e Fernando, após muito sacrifício, dedicação e estudo árduo, foi aprovado no concurso para Juiz de Direito do Estado de São Paulo, sendo enviado para uma cidade do interior, onde, no seu primeiro dia a frente de uma Vara Criminal, conheceu a Promotora de Justiça Cintia, que atuava naquele Fórum.

Naquele exato momento soube que estava apaixonado, mas não deixou que ela percebesse, afinal de contas acabara de ingressar na carreira e ainda tinham o fator complicador de trabalhar no mesmo ambiente.

Não lhe parecia a coisa mais correta a fazer.

Porém, o destino sacana como sempre, fez com que Fernando substituísse o juiz da Vara onde Cintia atuava e, entre uma audiência e outra, começaram a conversar aquela conversa que se arrasta da sala de audiência para o corredor do fórum, do corredor para o café, do café para o cinema e do cinema para o altar.

Pois, após dois anos trabalhando na mesma comarca, após dois anos de conversa entre as audiências, após dois anos de corredor e café, após dois anos de cinema e encontros, Fernando e Cintia se casaram.

 Apesar da vida corrida e do matrimônio, Fernando ainda mantinha comparecimento assíduo à Confraria, muito embora Pedro tivesse seguido caminhos que nenhum deles conhecia e não sabiam ao certo onde o teriam levado. Entre os membros atuais, além de Fernando, estavam Fabio, Jefferson e Luiz, Juízes de Direito, Roberto e Marcelo, Defensores Públicos e Vinicius, Procurador do Estado. Com três pontos em comum: O amor pelas obras de Stephen King, a formação em direito e o fato de serem alunos da mesma faculdade.

Ao abrirem a reunião, como sempre faziam, Fabio pediu a palavra dizendo que teriam naquele dia o ingresso de um novo membro, delegado de policia que tinha chegado recentemente à região.

Fernando percebeu que sentado em uma mesa que eles chamavam de “Torre Negra” – onde a luz que iluminava o restante da sala não alcançava – estava um homem, com o rosto coberto pela escuridão. Cigarro aceso e roupas pouco asseadas.

 Ao acenderem a luz Fernando pode perceber algo que jamais imaginaria: tratava-se de Pedro que tinha sido aprovado recentemente no concurso para delegado de Polícia e lá estava novamente em companhia dos amigos.

Deixaram a análise das “escrituras sagradas” de lado um momento, pois todos queriam saber as novidades e como havia sido a vida de Pedro até então. E assim foi feito. Ao final do encontro Pedro diz a Fernando:

- Cara to muito feliz em te ver. Ver que você está bem e que alcançou seu grande sonho. Conheceu uma mulher bacana e está casado hoje! Eu te invejo, pois jamais consegui fixar raízes em lugar algum e talvez agora como delegado eu consiga. Eu quero que você me desculpe por não ter conseguido vir ao seu casamento. Realmente eu queria, mas estava em fase de exames orais na polícia e não tive como. Mas me conta sobre a Cintia? Como ela é?

- Ela é maravilhosa. Eu não poderia escolher uma mulher mais perfeita para estar ao meu lado. Estamos “grávidos”. Nossa filha Letícia nasce no próximo mês. Estou feliz como nunca estive na vida: tenho a carreira perfeita, a família perfeita e agora meu melhor amigo por perto! – disse Fernando emocionado ao encontrar Pedro.

E o mais “novo” membro da Confraria acabou por fixar raízes mesmo naquela região o que deu às reuniões o ar agradável de outrora.

Dois anos se passaram. Letícia estava crescendo e tudo corria na sagrada normalidade que havia se instalado na vida de Fernando, até que um dia, o agente de segurança interrompe uma audiência presidida por ele dizendo:

- Excelência, desculpe interromper, mas precisamos conversar com o senhor. É extremamente importante e urgente.

Pedindo licença aos advogados e partes que estavam na audiência Fernando saiu da sala e viu os demais Juízes e Promotores na porta da sala onde Cintia trabalhava. Correu até lá e deparou-se com Jefferson e Luiz (que também eram juízes naquela comarca) já o esperando e levando para a sala de um deles.

- Fernando não sabemos como dizer isso mas... – Fabio engolindo seco é interrompido por Jefferson:

- Não há uma forma fácil de dizer isso. O carro da Cintia foi encontrado em um matagal todo sujo de sangue. Ela não estava dentro. Não se sabe o paradeiro dela até o momento e a polícia acha que isso aconteceu em questão de algumas horas, antes mesmo dela conseguir chegar ao fórum.

Passava das três da tarde e, efetivamente, Fernando não tivera noticias de Cintia até então. Foram correndo para o local e lá encontraram Pedro que acompanhava as investigações e veio até eles dizendo ao marido:

- Cara, antes mesmo de você chegar até lá eu preciso que você me diga uma coisa: você tem condições? O que você está prestes a ver talvez seja uma cena que jamais saia da sua cabeça. – disse Pedro.

Fernando, por sua vez, ainda atordoado, tirou o amigo delegado da frente e dirigiu-se até o carro. O que viu naquele local foi algo que permaneceu encrustado na memória de todos durante muitos anos. Sangue para todos os lados. Os bancos haviam mudado de cor após serem banhados por aquela cascata vermelha. Um cheiro horrendo de morte emanava daquele veículo que já estava abandonado havia algumas horas, debaixo daquele sol. Tamanha era a quantidade de sangue que ainda era possível sentir a umidade que tomou conta dos bancos.

A polícia, ainda sem saber muito sobre o paradeiro da vitima, coletou o sangue para comparar as amostras de DNA e poder excluir a hipótese do sangue ser mesmo de Cintia.

Não se sabia muito sobre o crime. Apenas que o carro foi abandonado encharcado de sangue. Sem corpo. Sem provas. Sem suspeito.

Fernando tentava, nos dias que se passaram, acalmar Leticia que a todo momento chamava pela mãe.

Na mesma semana, no entanto, foi possível constatar que o sangue coletado no carro, realmente, se tratava do sangue de Cíntia. Era pouquíssimo provável que ela estivesse viva naquela altura dos acontecimentos.

Nenhum pedido de resgate foi feito. Nenhum corpo (ou parte dele) foi encontrado na região. Nenhum sinal de latrocínio, pois nada foi roubado do local. A polícia tinha apenas: um carro, muito sangue e uma vitima desaparecida.

Com o passar dos dias Fernando, com a ajuda dos amigos, começou a trabalhar a perda de Cintia e introduzir o luto na pequena Leticia que ainda clamava por noticias da mãe.

Passados dois anos sem noticias de Cintia, Fernando não viu alternativa que não pedir a declaração judicial do óbito e tentar seguir a vida, da maneira que fosse possível.

Letícia estava crescendo e se conformando aos poucos. A figura da mãe começou a ser uma leve lembrança, como a bruma que emerge de um lago numa manhã fria.

A Confraria não mais se reuniu. Fernando tornou-se uma pessoa amargurada, estúpida, arbitrária e arrogante no trato. Estava irreconhecível e aos poucos perdia os amigos que ainda ficaram ao seu lado.

Eram só ele e Letícia e dessa forma a vida foi seguindo.

Assim, ainda sob a sombra de Cintia que não mais habitou aquela casa, foi criando a filha, da maneira que conseguia. A vida passa e com ela a tristeza vai se esvaindo lentamente como os fios de cabelo que caem ao chão, anunciando o avanço da idade.

A dor ainda existe, mas não causa o impacto de antigamente, afinal de contas os que aqui ficam devem seguir adiante. Apesar de ser clichê é a única coisa em que se apegar nesse momento.

E assim se passaram dez, quinze, vinte, trinta, trinta e cinco anos sem que a Confraria se reunisse e sem que se tocasse no nome de Cintia. Fernando tinha se afastado de tudo e de todos e parecia querer carregar consigo aquela dor que, em alguns momentos, parecia pertencer só a ele.

Até sua aparência havia mudado, parecia um andarilho com um severo problema nas costas. Andava curvado e arrastando seu corpo asqueroso pelas dependências do fórum, causando toda sorte de sentimentos, desde pena até repugnância.

Estava em vias de se aposentar e, passados quase quarenta anos do desaparecimento de Cintia, sequer havia noticias sobre o corpo. Realmente o mistério tomou conta daquela desgraça que tomou conta daquela pequena cidade e na vida de todos.

Aquele dia Fernando estava particularmente perturbado. Encerrou rapidamente as audiências e parecia estar com alguns envelopes nas mãos já tremulas pela idade. Deixou cair um ao sair da sala e nele estava escrito:

“Como disse o mestre: ‘a história pode esperar um ou dois anos’. Nesse momento, aproprio-me desse conceito e utilizo o pobre recurso da paráfrase para afirmar que: ‘a história espera até mais tempo’. Convido todos vocês, caros irmãos, para a ultima reunião de nossa Confraria a acontecer na minha casa, nesse sábado, no horário de costume. É de suma importância que todos estejam presentes, pois vocês serão testemunhas da obra que tomou vida, da ficção em movimento, do rubro que tinge a alma daqueles que aqui ficaram.”

E no sábado, no horário de costume, todos os membros da antiga confraria estavam lá. Já combalidos pela idade tentaram não entrar em detalhes sobre a vida sem Cintia durante todos esses anos.

Mas Pedro era Pedro, o inoportuno, o impertinente, a “semente do mal” que, por não saber ficar de boca fechada e, também, por carregar consigo o peso de não ter conseguido solucionar o crime que destruiu a vida do amigo, foi falando:

- Fernando eu sei que todo mundo aqui tá com o cu na mão pra falar, mas eu tenho que te dizer algumas coisas. Eu sinto muito, até hoje, por não ter descoberto o desgraçado que levou sua mulher embora e destruiu a vida de todo mundo, da sua filha. Serio cara, eu não consigo dormir direito desde aquele dia! Eu espero ao menos que você possa perdoar esse seu amigo por ser tão inútil quando você mais precisou. Minha carreira deixou de fazer sentido a partir daquele momento.

Fernando, ao perceber o incômodo que tomou conta de todos resolveu romper o silencio a respeito de Cintia, que durava décadas:

- Meus amigos. Não! Mais que isso, meus irmãos. Vocês estiveram ao meu lado em um dos piores momentos pelos quais passei. Porém, enganam-se aquele que pensa que foi naquele momento, quando eu vi o carro dela todo banhado em sangue que minha vida acabou. Não meus irmãos. Por mais que eu tenha total consciência do que se tornou minha vida e a vida da minha filha, que hoje sequer manda noticias para o pai, naquele momento eu precisava seguir e pensava comigo mesmo: “garanto que com o tempo qualquer vestígio dela desaparecerá e a morte dela será um mistério até mesmo para mim” . Somos pessoas inteligentes e ao ouvirem isso vocês já descobriram do que se trata. Vamos até o quintal.

E partiram, atônitos, ate o quintal onde o mato já havia tomado conta de todo o espaço. No momento que Fernando disse aquelas palavras, todos, sem exceção, já sabiam do que se tratava. Caminhou, com bastante dificuldade, até uma mangueira que ficava no meio daquilo que um dia já foi o jardim e disse:

- Pedro, meu amigo amado, a resposta para sua busca está enterrada no pé dessa mangueira. Pois uma semana antes eu descobri que Leticia não era, de fato, minha filha. Isso mesmo. Cintia vinha se relacionando com um colega que, infelizmente transferiu-se para outra comarca, fora do meu alcance. Em uma discussão ela disse que desde sempre eles se relacionavam e que, pelo fato dele ser casado não teria como assumir o relacionamento. Então ela precisava mais de mim do que dele, pois o álibi estaria formado. Porém, ao saber que o maldito estaria se relacionando com outra mulher, ela surtou e tentou agredi-lo de todas as formas. A mulher veio até minha casa e escancarou a relação que era tão notória e eu tão cego. Ao indaga-la ela sequer negou. Disse que tudo era verdade, que eu não era homem sequer para lhe satisfazer e, arrematou os impropérios com uma cusparada no meu rosto. Tomado pelo ódio e pela vergonha eu peguei uma faca que estava ao meu alcance e a degolei aqui mesmo, levando o corpo para o carro e depois enterrando debaixo da velha mangueira. Depois o único trabalho que tive foi levar o carro, ainda de madrugada e abandona-lo no matagal. Tomei o cuidado de limpar as impressões digitais e não deixar rastros sobre o crime. Apesar dela ter sido a mulher dos meus sonhos eu sinto uma alegria inenarrável pela vida miserável dela ter acabado por minhas mãos. Agora, no entanto, vocês já sabem da verdade.

Anos após aquele crime aterrador, a verdade é descoberta em um momento onde nada pode ser feito. Fernando não pode mais ser punido pelo que fez e, talvez, a punição que lhe seja mais eficaz tenha sido o afastamento da filha que não suportou o monstro que se tornou o pai após aquele fatídico dia.

E acabou sua estória como o personagem do conto que mais gostava, já escrito pelo mestre King. Pois, Fernando, a exemplo do protagonista disse a si mesmo:

com o tempo qualquer vestígio dela desaparecerá e a morte dela será um mistério até mesmo para mim”

Vidas começam e acabam, umas antes outras nem tanto. Mas o que se tira desse relato é que nem sempre a morte é a responsável por acabar com a própria vida. A decepção de Fernando levou embora o ultimo fio de humanidade que já habitou seu coração. Um cadáver vivo, um homem sem alma, um saco de fezes.

Seus últimos dias foram dedicados a olhar a mangueira, sem descanso. Fizesse chuva, sol, frio, lá estava ele parado olhando para ela. E assim partiu, deixando para trás uma tragédia que ele mesmo criou e que levou dele a capacidade de enxergar o mundo fora de sua cabeça doentia.

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