CONFRARIA DOS ILUMINADOS
Vidas
começam e terminam todos os dias. Umas mais brevemente do que outras, mas o
ciclo sempre chega ao fim. As circunstancias em que uma pessoa deixa de existir
ainda estão além da compreensão do mais cético dos seres humanos.
O
que vocês estão prestes a ler é o relato sórdido de uma morte sem culpados. Ao
menos aparentes. Pois toda morte que não seja natural, é ocasionada por alguém.
Conheçam
o jovem Fernando, 19 anos, que acabou de ingressar na faculdade de direito
carregando consigo o sonho de se tornar Juiz. Prodígio, desde sempre procurou
adquirir o máximo de conhecimento que a mente humana fosse capaz de absorver.
Tinha
poucos amigos e, já na primeira semana de aula conheceu o oposto de sua
personalidade quando Pedro, atrasado, entrou na sala de aula.
Pouco
compromissado com regras, Pedro era totalmente diferente de Fernando.
Desregrado, pouco estudava e vivia às custas dos colegas para entender o
suficiente e ir bem nas provas, quase sempre surpresas para ele mesmo que nunca
tinha em mãos o calendário passado pelos professores.
-
Tem alguém sentado aqui? – perguntou Pedro a Fernando, já com a aula em
andamento.
-
Não. – disse o monossilábico Fernando que só queria prestar atenção naquela
“maravilhosa” aula de teoria geral do estado que acabara de começar.
A
aula por si só já era maçante. O professor, por sua vez, deixava tudo mais
difícil. Era daqueles homens de meia idade que parecia ter estacionado nos anos
20: gravata borboleta e suspensório eram seu uniforme e as aulas, carregadas de
teoria, se arrastavam até que soasse o sinal do intervalo.
E
saiam correndo como se fugissem de um abatedouro, rumo à lanchonete. Naquele
momento havia começado uma amizade que durou a vida toda.
Pedro
aproximou-se de Fernando e, com um jeito despojado que chamou a atenção disse:
-
Porra “véio”, aula chata do Caralho! O professor parece o boneco assassino.
Fernando
sorriu. Apesar de não estar acostumado com aquele tipo de linguajar sentia-se a
vontade pela primeira vez naquele universo onde acabara de pisar. Tudo era novo
e sabia que precisava de amigos, não era possível sobreviver sozinho naquela
selva. Foi então que percebeu que entre os livros que Pedro carregava estava um
exemplar d´O Iluminado de Stephen King. Fernando era simplesmente apaixonado
por contos e estórias de suspense, tendo no mestre King sua referencia mais
forte.
- "Tudo bem
mamãe, eu sei o que é canibalismo, eu já vi isso na tv." -
disse Fernando com um sorriso entreaberto.
- Vai se foder moleque! Você conhece essa
porra também???? Mano! Jamais imaginei que ia achar um fã dessas merdas por
aqui! – respondeu Pedro extasiado por ter encontrado um amigo que
compartilhasse com ele o amor pelo suspense e pelo terror.
Naquele momento nascia a “Confraria dos
Iluminados”, um grupo de alunos daquela faculdade de direito que se reuniam
todos os sábados para discutir as obras de Stephen King. Cada um era
responsável por um conto, livro ou estória. Liam e discutiam arduamente até perderem
a hora de ir para casa.
Fernando incumbiu-se da “Janela Secreta”, um
dos contos mais psicologicamente perturbadores que já foi feito. Era seu
preferido.
Depois revezavam até que todos tivessem lido
tudo o que já foi produzido pelo mestre King.
E assim passaram os anos, tendo os jovens
garotos aquela válvula de escape que os fez sobreviver aos árduos dias de
acadêmicos naquela faculdade.
Após a graduação, muito embora cada um
tivesse seguido sua carreira, sempre arranjavam um tempo para a reunião da
Confraria que sempre rediscutia a obra de Stephen King.
O tempo foi passando e Fernando, após muito
sacrifício, dedicação e estudo árduo, foi aprovado no concurso para Juiz de
Direito do Estado de São Paulo, sendo enviado para uma cidade do interior,
onde, no seu primeiro dia a frente de uma Vara Criminal, conheceu a Promotora
de Justiça Cintia, que atuava naquele Fórum.
Naquele exato momento soube que estava
apaixonado, mas não deixou que ela percebesse, afinal de contas acabara de ingressar
na carreira e ainda tinham o fator complicador de trabalhar no mesmo ambiente.
Não lhe parecia a coisa mais correta a fazer.
Porém, o destino sacana como sempre, fez com
que Fernando substituísse o juiz da Vara onde Cintia atuava e, entre uma
audiência e outra, começaram a conversar aquela conversa que se arrasta da sala
de audiência para o corredor do fórum, do corredor para o café, do café para o
cinema e do cinema para o altar.
Pois, após dois anos trabalhando na mesma
comarca, após dois anos de conversa entre as audiências, após dois anos de
corredor e café, após dois anos de cinema e encontros, Fernando e Cintia se
casaram.
Apesar
da vida corrida e do matrimônio, Fernando ainda mantinha comparecimento assíduo
à Confraria, muito embora Pedro tivesse seguido caminhos que nenhum deles
conhecia e não sabiam ao certo onde o teriam levado. Entre os membros atuais,
além de Fernando, estavam Fabio, Jefferson e Luiz, Juízes de Direito, Roberto e
Marcelo, Defensores Públicos e Vinicius, Procurador do Estado. Com três pontos
em comum: O amor pelas obras de Stephen King, a formação em direito e o fato de
serem alunos da mesma faculdade.
Ao abrirem a reunião, como sempre faziam,
Fabio pediu a palavra dizendo que teriam naquele dia o ingresso de um novo
membro, delegado de policia que tinha chegado recentemente à região.
Fernando percebeu que sentado em uma mesa que
eles chamavam de “Torre Negra” – onde a luz que iluminava o restante da sala
não alcançava – estava um homem, com o rosto coberto pela escuridão. Cigarro aceso
e roupas pouco asseadas.
Ao
acenderem a luz Fernando pode perceber algo que jamais imaginaria: tratava-se
de Pedro que tinha sido aprovado recentemente no concurso para delegado de
Polícia e lá estava novamente em companhia dos amigos.
Deixaram a análise das “escrituras sagradas”
de lado um momento, pois todos queriam saber as novidades e como havia sido a
vida de Pedro até então. E assim foi feito. Ao final do encontro Pedro diz a
Fernando:
- Cara to muito feliz em te ver. Ver que você
está bem e que alcançou seu grande sonho. Conheceu uma mulher bacana e está
casado hoje! Eu te invejo, pois jamais consegui fixar raízes em lugar algum e
talvez agora como delegado eu consiga. Eu quero que você me desculpe por não
ter conseguido vir ao seu casamento. Realmente eu queria, mas estava em fase de
exames orais na polícia e não tive como. Mas me conta sobre a Cintia? Como ela
é?
- Ela é maravilhosa. Eu não poderia escolher
uma mulher mais perfeita para estar ao meu lado. Estamos “grávidos”. Nossa
filha Letícia nasce no próximo mês. Estou feliz como nunca estive na vida:
tenho a carreira perfeita, a família perfeita e agora meu melhor amigo por
perto! – disse Fernando emocionado ao encontrar Pedro.
E o mais “novo” membro da Confraria acabou
por fixar raízes mesmo naquela região o que deu às reuniões o ar agradável de
outrora.
Dois anos se passaram. Letícia estava
crescendo e tudo corria na sagrada normalidade que havia se instalado na vida
de Fernando, até que um dia, o agente de segurança interrompe uma audiência
presidida por ele dizendo:
- Excelência, desculpe interromper, mas
precisamos conversar com o senhor. É extremamente importante e urgente.
Pedindo licença aos advogados e partes que
estavam na audiência Fernando saiu da sala e viu os demais Juízes e Promotores
na porta da sala onde Cintia trabalhava. Correu até lá e deparou-se com
Jefferson e Luiz (que também eram juízes naquela comarca) já o esperando e
levando para a sala de um deles.
- Fernando não sabemos como dizer isso mas...
– Fabio engolindo seco é interrompido por Jefferson:
- Não há uma forma fácil de dizer isso. O
carro da Cintia foi encontrado em um matagal todo sujo de sangue. Ela não
estava dentro. Não se sabe o paradeiro dela até o momento e a polícia acha que
isso aconteceu em questão de algumas horas, antes mesmo dela conseguir chegar
ao fórum.
Passava das três da tarde e, efetivamente,
Fernando não tivera noticias de Cintia até então. Foram correndo para o local e
lá encontraram Pedro que acompanhava as investigações e veio até eles dizendo
ao marido:
- Cara, antes mesmo de você chegar até lá eu
preciso que você me diga uma coisa: você tem condições? O que você está prestes
a ver talvez seja uma cena que jamais saia da sua cabeça. – disse Pedro.
Fernando, por sua vez, ainda atordoado, tirou
o amigo delegado da frente e dirigiu-se até o carro. O que viu naquele local
foi algo que permaneceu encrustado na memória de todos durante muitos anos.
Sangue para todos os lados. Os bancos haviam mudado de cor após serem banhados
por aquela cascata vermelha. Um cheiro horrendo de morte emanava daquele
veículo que já estava abandonado havia algumas horas, debaixo daquele sol. Tamanha
era a quantidade de sangue que ainda era possível sentir a umidade que tomou
conta dos bancos.
A polícia, ainda sem saber muito sobre o paradeiro
da vitima, coletou o sangue para comparar as amostras de DNA e poder excluir a
hipótese do sangue ser mesmo de Cintia.
Não se sabia muito sobre o crime. Apenas que
o carro foi abandonado encharcado de sangue. Sem corpo. Sem provas. Sem
suspeito.
Fernando tentava, nos dias que se passaram,
acalmar Leticia que a todo momento chamava pela mãe.
Na mesma semana, no entanto, foi possível
constatar que o sangue coletado no carro, realmente, se tratava do sangue de
Cíntia. Era pouquíssimo provável que ela estivesse viva naquela altura dos
acontecimentos.
Nenhum pedido de resgate foi feito. Nenhum
corpo (ou parte dele) foi encontrado na região. Nenhum sinal de latrocínio,
pois nada foi roubado do local. A polícia tinha apenas: um carro, muito sangue
e uma vitima desaparecida.
Com o passar dos dias Fernando, com a ajuda
dos amigos, começou a trabalhar a perda de Cintia e introduzir o luto na
pequena Leticia que ainda clamava por noticias da mãe.
Passados dois anos sem noticias de Cintia,
Fernando não viu alternativa que não pedir a declaração judicial do óbito e
tentar seguir a vida, da maneira que fosse possível.
Letícia estava crescendo e se conformando aos
poucos. A figura da mãe começou a ser uma leve lembrança, como a bruma que
emerge de um lago numa manhã fria.
A Confraria não mais se reuniu. Fernando
tornou-se uma pessoa amargurada, estúpida, arbitrária e arrogante no trato.
Estava irreconhecível e aos poucos perdia os amigos que ainda ficaram ao seu
lado.
Eram só ele e Letícia e dessa forma a vida
foi seguindo.
Assim, ainda sob a sombra de Cintia que não
mais habitou aquela casa, foi criando a filha, da maneira que conseguia. A vida
passa e com ela a tristeza vai se esvaindo lentamente como os fios de cabelo
que caem ao chão, anunciando o avanço da idade.
A dor ainda existe, mas não causa o impacto
de antigamente, afinal de contas os que aqui ficam devem seguir adiante. Apesar
de ser clichê é a única coisa em que se apegar nesse momento.
E assim se passaram dez, quinze, vinte,
trinta, trinta e cinco anos sem que a Confraria se reunisse e sem que se
tocasse no nome de Cintia. Fernando tinha se afastado de tudo e de todos e
parecia querer carregar consigo aquela dor que, em alguns momentos, parecia
pertencer só a ele.
Até sua aparência havia mudado, parecia um
andarilho com um severo problema nas costas. Andava curvado e arrastando seu
corpo asqueroso pelas dependências do fórum, causando toda sorte de
sentimentos, desde pena até repugnância.
Estava em vias de se aposentar e, passados
quase quarenta anos do desaparecimento de Cintia, sequer havia noticias sobre o
corpo. Realmente o mistério tomou conta daquela desgraça que tomou conta daquela
pequena cidade e na vida de todos.
Aquele dia Fernando estava particularmente
perturbado. Encerrou rapidamente as audiências e parecia estar com alguns
envelopes nas mãos já tremulas pela idade. Deixou cair um ao sair da sala e
nele estava escrito:
“Como
disse o mestre: ‘a história pode esperar um ou dois anos’. Nesse momento,
aproprio-me desse conceito e utilizo o pobre recurso da paráfrase para afirmar
que: ‘a história espera até mais tempo’. Convido todos vocês, caros irmãos,
para a ultima reunião de nossa Confraria a acontecer na minha casa, nesse
sábado, no horário de costume. É de suma importância que todos estejam
presentes, pois vocês serão testemunhas da obra que tomou vida, da ficção em
movimento, do rubro que tinge a alma daqueles que aqui ficaram.”
E no sábado, no horário de costume, todos os
membros da antiga confraria estavam lá. Já combalidos pela idade tentaram não
entrar em detalhes sobre a vida sem Cintia durante todos esses anos.
Mas Pedro era Pedro, o inoportuno, o
impertinente, a “semente do mal” que, por não saber ficar de boca fechada e,
também, por carregar consigo o peso de não ter conseguido solucionar o crime
que destruiu a vida do amigo, foi falando:
- Fernando eu sei que todo mundo aqui tá com
o cu na mão pra falar, mas eu tenho que te dizer algumas coisas. Eu sinto
muito, até hoje, por não ter descoberto o desgraçado que levou sua mulher
embora e destruiu a vida de todo mundo, da sua filha. Serio cara, eu não
consigo dormir direito desde aquele dia! Eu espero ao menos que você possa
perdoar esse seu amigo por ser tão inútil quando você mais precisou. Minha
carreira deixou de fazer sentido a partir daquele momento.
Fernando, ao perceber o incômodo que tomou
conta de todos resolveu romper o silencio a respeito de Cintia, que durava décadas:
- Meus amigos. Não! Mais que isso, meus
irmãos. Vocês estiveram ao meu lado em um dos piores momentos pelos quais
passei. Porém, enganam-se aquele que pensa que foi naquele momento, quando eu
vi o carro dela todo banhado em sangue que minha vida acabou. Não meus irmãos.
Por mais que eu tenha total consciência do que se tornou minha vida e a vida da
minha filha, que hoje sequer manda noticias para o pai, naquele momento eu
precisava seguir e pensava comigo mesmo: “garanto
que com o tempo qualquer vestígio dela desaparecerá e a morte dela será um mistério
até mesmo para mim” . Somos pessoas inteligentes e ao ouvirem isso vocês já
descobriram do que se trata. Vamos até o quintal.
E partiram, atônitos, ate o quintal onde o
mato já havia tomado conta de todo o espaço. No momento que Fernando disse aquelas
palavras, todos, sem exceção, já sabiam do que se tratava. Caminhou, com
bastante dificuldade, até uma mangueira que ficava no meio daquilo que um dia
já foi o jardim e disse:
- Pedro, meu amigo amado, a resposta para sua
busca está enterrada no pé dessa mangueira. Pois uma semana antes eu descobri
que Leticia não era, de fato, minha filha. Isso mesmo. Cintia vinha se
relacionando com um colega que, infelizmente transferiu-se para outra comarca,
fora do meu alcance. Em uma discussão ela disse que desde sempre eles se
relacionavam e que, pelo fato dele ser casado não teria como assumir o
relacionamento. Então ela precisava mais de mim do que dele, pois o álibi estaria
formado. Porém, ao saber que o maldito estaria se relacionando com outra
mulher, ela surtou e tentou agredi-lo de todas as formas. A mulher veio até
minha casa e escancarou a relação que era tão notória e eu tão cego. Ao
indaga-la ela sequer negou. Disse que tudo era verdade, que eu não era homem
sequer para lhe satisfazer e, arrematou os impropérios com uma cusparada no meu
rosto. Tomado pelo ódio e pela vergonha eu peguei uma faca que estava ao meu
alcance e a degolei aqui mesmo, levando o corpo para o carro e depois
enterrando debaixo da velha mangueira. Depois o único trabalho que tive foi
levar o carro, ainda de madrugada e abandona-lo no matagal. Tomei o cuidado de
limpar as impressões digitais e não deixar rastros sobre o crime. Apesar dela ter
sido a mulher dos meus sonhos eu sinto uma alegria inenarrável pela vida miserável
dela ter acabado por minhas mãos. Agora, no entanto, vocês já sabem da verdade.
Anos após aquele crime aterrador, a verdade é
descoberta em um momento onde nada pode ser feito. Fernando não pode mais ser
punido pelo que fez e, talvez, a punição que lhe seja mais eficaz tenha sido o
afastamento da filha que não suportou o monstro que se tornou o pai após aquele
fatídico dia.
E acabou sua estória como o personagem do
conto que mais gostava, já escrito pelo mestre King. Pois, Fernando, a exemplo
do protagonista disse a si mesmo:
“com o
tempo qualquer vestígio dela desaparecerá e a morte dela será um mistério até
mesmo para mim”
Vidas começam e acabam, umas antes outras nem
tanto. Mas o que se tira desse relato é que nem sempre a morte é a responsável
por acabar com a própria vida. A decepção de Fernando levou embora o ultimo fio
de humanidade que já habitou seu coração. Um cadáver vivo, um homem sem alma,
um saco de fezes.
Seus últimos dias foram dedicados a olhar a
mangueira, sem descanso. Fizesse chuva, sol, frio, lá estava ele parado olhando
para ela. E assim partiu, deixando para trás uma tragédia que ele mesmo criou e
que levou dele a capacidade de enxergar o mundo fora de sua cabeça doentia.
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