ANTES DO FIM
PARTE III
Por mais que
tivesse substituído a memoria daquele primeiro dia que desejava mudar, Jonas
sentia que o exercício tinha lhe causado um sofrimento absurdo.
Porém, apesar da
dor lancinante que violentava seu cérebro, ele conseguia lembrar da mãe sorrindo
ao encontra-lo na porta da escola, como se aquele dia não tivesse sido tão
triste como foi.
Pediu a Ângelo que,
se possível, o acompanhasse em uma caminhada pelo hospital, embora ainda
soubesse que tivesse limitações em relação à locomoção e tudo o mais.
- Preciso me
movimentar um pouco – disse ele – talvez tomar um café. Você não negaria um
café para um homem que está com os dias contados, não é?
E sorriu, sabendo
que Ângelo não negaria aquele pedido.
Puseram-se, portanto,
a caminhar. Com dificuldade Jonas apoiava-se em Ângelo, mas andava devagar.
Ainda no corredor pode notar que um médico conversava com um rapaz. As
expressões dos rostos não eram das melhores e ao passar perto ele pode ouvir
que o médico o que o medico dizia:
- O estado de saúde
do seu irmão é muito grave. Eu diria que devemos começar a pensar em cuidados paliativos
e em doação de órgãos, pois acreditamos ser irreversível o quadro.
De canto de olho
percebeu que o rapaz chorava e que a dor que sentia naquele momento era tão
grande que quase era possível senti-la.
Caminharam em
silencio ate a cafeteria. Sentaram-se.
Ângelo percebeu o
silêncio sufocante do rapaz e resolveu perguntar algo que já havia percebido:
- O que você sentiu
depois de ouvir o que o médico disse para aquele rapaz no corredor?
Jonas respirou
fundo e disse:
- Na verdade não
foi o fato em si, mas sim uma palavra que eu ouvi em meio aquela conversa. Isso
fez com que eu me recordasse de outro momento do meu passado que eu gostaria de
mudar. Quando ele disse “irmão” eu logo me recordei de um momento em que tive
uma das atitudes mais covardes da minha vida.
Era chegado o
momento de relembrar o segundo dia que gostaria de mudar no seu passado. Jonas
buscou folego nos pulmões e fez uma longa pausa, tentando não permitir que a
dor que sentia na cabeça o fizesse desmaiar.
- Estávamos na
escola – disse ele. Eu e meus irmãos estudávamos no mesmo local, porém em
classes de séries diferentes. Eu como mais velho tinha meus amigos, igualmente
mais velhos. Tínhamos por tradição cada um ficar com seus amigos na hora do
intervalo. Era um dia como qualquer outro e eu estava rido com meus amigos,
falando bobagens e exalando a pura essência que a idade proporcionava. Sem muitas
preocupações, era assim que eu passava meus dias. Não era muito popular, pois
sempre escolhi caminhos que assassinaram qualquer chance de popularidade que um
adolescente poderia ter. Porém, eu conseguia conviver tranquilamente com tal
limitação, pois a popularidade não fazia nenhuma falta. De outro lado, a
ausência de popularidade muitas vezes faz com que tenhamos uma certa
notoriedade negativa, pois invariavelmente viramos alvo de bullying. Não era
diferente comigo. Já meus irmãos eram um pouco mais populares em suas
respectivas classes. Durante um dia qualquer, comum como qualquer outro, eu
percebi um tumulto se formando perto da escada para o segundo andar. Quando dei
por mim, vi um certo “machão” da escola arrastando meu irmão pelo braço até
mim. Gritando me disse: “a próxima vez que seu irmão passar atrás de mim eu vou
bater nele”. Confesso que no momento meu cérebro entrou em choque. Eu não sabia
o que fazer, afinal de contas na minha frente estavam meu irmão e o cara que eu
mais temia naquele mundo. Já havia apanhado dele varias vezes e naquele dia ele
tinha me escolhido como instrumento para demonstração de poder. E eu não fiz
nada. Pelo contrario, apenas peguei meu irmão pelo braço e o repreendi, dizendo
que era para nunca mais passar atrás daquele cara senão quem bateria nele seria
eu. Desde então eu tenho me sentido a pessoa mais inútil e repugnante do
planeta, pois não tive a capacidade de defender alguém que eu tanto amo. Eu até
acho que mereço mesmo morrer sozinho neste hospital, ser enterrado em qualquer
buraco e deixar que a terra destrua esse corpo inútil.
E parou por um
instante, levando a mão à cabeça. Aquele desabafo trouxe uma dor terrível como
uma faca quente rasgando o crânio.
Ângelo esperou um
pouco até que o rapaz refletisse bastante sobre tudo o que fora dito até então.
Após uma longa
pausa, resolveu falar:
- Bom, de tudo o
que você me disse eu consigo extrair duas situações que explicam muito dos
sentimentos que você me expôs até agora: bullying e culpa. Eu não posso dizer
que a reação que você teve foi certa, mas se justifica pelo medo que você
sentia daquele agressor irracional que queria demonstrar seu poder a qualquer
custo. O bullying rouba a infância ou adolescência de quem é alvo dele. E foi
exatamente o que aconteceu com você. De toda sua adolescência os momentos que
mais te marcaram remetem a agressões dessa natureza. Estou certo? - nesse
momento Jonas acenou positivamente com a cabeça, de forma constrangida- Algumas pessoas reagem de uma forma, outras de
maneira diferente. Isso varia de um para outro. Porém, o ponto comum disso tudo
é que o dano causado é irreversível. As consequências podem ser maiores ou
menores, mas existem em todos os casos.
Para que Jonas
assimilasse o que fora dito até então, Ângelo pediu dois cafés, fazendo uma
pausa para que o rapaz descansasse por um breve momento.
Quando os dois cafés
chegaram, notou que Jonas olhava para o fundo da xicara como se enxergasse com
tristeza aquele dia. Fitou o café até que uma lagrima rolou de seu rosto.
Era o momento de
retomar o raciocínio.
- Vamos falar um
pouco sobre culpa – disse Ângelo. Ao contrario do que muita gente pensa,
dependendo da intensidade com a qual é sentida, a culpa não é algo tão terrível
assim. Desde que em doses moderadas, ela pode representar um aprendizado, uma
moldadora de condutas que serve para aperfeiçoar atos de convivência. Todo
sentimento ruim pode ser usado a nosso favor. A depressão é um exemplo disso! Ela
força o cérebro a trabalhar sem descanso, muito embora essa atividade seja
negativa na maior parte do tempo. Porém, se conseguimos utilizar um potencial
enorme do nosso cérebro trabalhando pensamentos ruins, podemos usa-lo para as
demais situações da vida. Todo sentimento ruim pode ser usado como aliado. A
culpa não é diferente. Desde que não seja algo que nos consuma por dentro, ela
pode ser usada como um meio de aperfeiçoar nosso “eu”. Mas, no seu caso, a
intensidade não permite esse exercício e para que você tenha um pouco de paz, é
preciso abandoná-la. Sinto insistir nesse assunto, mas você tem pouco tempo de
vida. Se você não se libertar dessa culpa, ainda que um pouco dela, não
conseguirá partir em paz. Proponho mais uma vez um exercício: diga-me como você
gostaria que aquele dia fosse? O que você mudaria nele?
Jonas procurou as
palavras certas, pois não queria jogar ao vento qualquer afirmação. Não tinha
tempo para aquilo. Quando se sentiu preparado, tomou um gole do café e levantou
a cabeça. Seu olhar era assustadoramente demoníaco como se tivesse retornado
naquele dia e a fúria tivesse tomado conta do seu coração. Sem muito relutar
começou a falar:
- Se eu pudesse
voltar naquele dia talvez pusesse para fora toda a fúria que se apossou do meu
coração ao longo de todos esses anos. Quando avistasse meu irmão sendo
arrastado por aquele maldito teria voado no pescoço dele e descontado todo o ódio
que eu sentia naquele momento, de tudo o que ele já havia feito comigo e do que
estava fazendo com meu irmão. Provavelmente eu deixaria um estrago bem grande
nos dentes dele e ele pensaria duas vezes antes de fazer o que estava
acostumado com qualquer outra pessoa naquele mundo. Deixaria bem claro para
todos os expectadores daquela barbárie que, o próximo que mexesse com a minha
família teria o mesmo destino. Eu sempre fui uma pessoa inimiga da violência,
mas por muito tempo a violência foi meu algoz. Um dos meus maiores
arrependimentos foi não ter agido de forma violenta naquele dia. Ainda que eu
não agisse dessa forma eu deveria ter defendido o meu irmão e se eu pudesse
voltar naquele dia, teria feito isso. Teria defendido ferrenhamente o meu
irmão.
Após uma breve
reflexão Ângelo disse:
- Não digo que se você
tivesse usado a violência teria resolvido seu problema. O que “os violentos”
não sabem é que o uso da força traz uma satisfação momentânea que não faz valer
os danos causados, esses sim permanentes. A violência não é a resposta, não é a
reação mais adequada. Nesse exato momento, a ideia de ter sido violento te
trouxe uma satisfação, um prazer. Mas posso assegurar que essa satisfação
durará poucos instantes. A linha entra a humanidade e a bestialidade é tênue meu
amigo. Em poucos segundos deixamos de ser racionais e passamos a ser bestas
violentas e cegas. Vale a pena? Não. Essa é a resposta. A vida desse garoto que
te agredia pressupunha a violência, pelo ambiente que viva. Tenha a certeza de
que a violência lhe era comum. Ele só sabia agir com esse tipo de violência,
que causou tanto dano a todos. Hoje não posso dizer qual foi o destino desse
garoto. Mas posso assegurar que a violência o acompanhará para sempre. Pessoas nascidas
“no campo de batalha” tendem a viver “no campo de batalha” e tem por destino morrer
“no campo de batalha”. Quem conhece a brutalidade e a experimenta, dificilmente
a abandona ou acaba se tornando um escravo dela. Considere-se um privilegiado
por não ter cedido aos caprichos da violência. Claro que você deveria ter
defendido seu irmão, mesmo que tivesse sofrido por causa disso. Porém,
imaginemos que você tivesse conseguido dialogar com aquele garoto e mostrado
que ninguém incomoda sua família, isso resolveria seu problema? Respondo: sim!
Pois você não foi criado em um campo de batalha. Nunca se arrependa por não ter
sido violento.
Jonas não sabia o
que dizer. Porém a ideia de ter defendido seu irmão, mesmo que sem uso da violência,
deixava seu coração mais leve. Sentia-se em paz e aceitava a ideia de ter
conseguido dialogar com aquele garoto, ainda que fantasiosa.
Mesmo que tivesse
alimentado a ideia de ser violento por toda sua vida, hoje sabia que não era o
melhor a fazer. Sentia-se em paz e enxergava aquele dia como o “dia em que o
bullying foi enfrentado sem o uso da força”.
Essa é uma
conclusão difícil de alcançar sozinho. Porém seu coração estava leve. Estava em
paz. Aquele dia não mais o incomodava e poderia partir sem que ele o puxasse
para o passado.
Voltou caminhando
com dificuldade para seu quarto, apoiando-se em Ângelo. Mas estava satisfeito. Aquela
tinha sido a melhor caminhada da sua vida, mas não por ter sido uma das ultimas.
Aquela caminhada
foi sua libertação de um sentimento há muito aprisionado e que o prendia a um
perfil violento que não o pertencia.
Estava, mais uma
vez, em paz.
CONTINUA NA PARTE
IV
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