domingo, 23 de agosto de 2015


ANTES DO FIM

PARTE III

 

 

 

Por mais que tivesse substituído a memoria daquele primeiro dia que desejava mudar, Jonas sentia que o exercício tinha lhe causado um sofrimento absurdo.

Porém, apesar da dor lancinante que violentava seu cérebro, ele conseguia lembrar da mãe sorrindo ao encontra-lo na porta da escola, como se aquele dia não tivesse sido tão triste como foi.

Pediu a Ângelo que, se possível, o acompanhasse em uma caminhada pelo hospital, embora ainda soubesse que tivesse limitações em relação à locomoção e tudo o mais.

- Preciso me movimentar um pouco – disse ele – talvez tomar um café. Você não negaria um café para um homem que está com os dias contados, não é?

E sorriu, sabendo que Ângelo não negaria aquele pedido.

Puseram-se, portanto, a caminhar. Com dificuldade Jonas apoiava-se em Ângelo, mas andava devagar. Ainda no corredor pode notar que um médico conversava com um rapaz. As expressões dos rostos não eram das melhores e ao passar perto ele pode ouvir que o médico o que o medico dizia:

- O estado de saúde do seu irmão é muito grave. Eu diria que devemos começar a pensar em cuidados paliativos e em doação de órgãos, pois acreditamos ser irreversível o quadro.

De canto de olho percebeu que o rapaz chorava e que a dor que sentia naquele momento era tão grande que quase era possível senti-la.

Caminharam em silencio ate a cafeteria. Sentaram-se.

Ângelo percebeu o silêncio sufocante do rapaz e resolveu perguntar algo que já havia percebido:

- O que você sentiu depois de ouvir o que o médico disse para aquele rapaz no corredor?

Jonas respirou fundo e disse:

- Na verdade não foi o fato em si, mas sim uma palavra que eu ouvi em meio aquela conversa. Isso fez com que eu me recordasse de outro momento do meu passado que eu gostaria de mudar. Quando ele disse “irmão” eu logo me recordei de um momento em que tive uma das atitudes mais covardes da minha vida.

Era chegado o momento de relembrar o segundo dia que gostaria de mudar no seu passado. Jonas buscou folego nos pulmões e fez uma longa pausa, tentando não permitir que a dor que sentia na cabeça o fizesse desmaiar.

- Estávamos na escola – disse ele. Eu e meus irmãos estudávamos no mesmo local, porém em classes de séries diferentes. Eu como mais velho tinha meus amigos, igualmente mais velhos. Tínhamos por tradição cada um ficar com seus amigos na hora do intervalo. Era um dia como qualquer outro e eu estava rido com meus amigos, falando bobagens e exalando a pura essência que a idade proporcionava. Sem muitas preocupações, era assim que eu passava meus dias. Não era muito popular, pois sempre escolhi caminhos que assassinaram qualquer chance de popularidade que um adolescente poderia ter. Porém, eu conseguia conviver tranquilamente com tal limitação, pois a popularidade não fazia nenhuma falta. De outro lado, a ausência de popularidade muitas vezes faz com que tenhamos uma certa notoriedade negativa, pois invariavelmente viramos alvo de bullying. Não era diferente comigo. Já meus irmãos eram um pouco mais populares em suas respectivas classes. Durante um dia qualquer, comum como qualquer outro, eu percebi um tumulto se formando perto da escada para o segundo andar. Quando dei por mim, vi um certo “machão” da escola arrastando meu irmão pelo braço até mim. Gritando me disse: “a próxima vez que seu irmão passar atrás de mim eu vou bater nele”. Confesso que no momento meu cérebro entrou em choque. Eu não sabia o que fazer, afinal de contas na minha frente estavam meu irmão e o cara que eu mais temia naquele mundo. Já havia apanhado dele varias vezes e naquele dia ele tinha me escolhido como instrumento para demonstração de poder. E eu não fiz nada. Pelo contrario, apenas peguei meu irmão pelo braço e o repreendi, dizendo que era para nunca mais passar atrás daquele cara senão quem bateria nele seria eu. Desde então eu tenho me sentido a pessoa mais inútil e repugnante do planeta, pois não tive a capacidade de defender alguém que eu tanto amo. Eu até acho que mereço mesmo morrer sozinho neste hospital, ser enterrado em qualquer buraco e deixar que a terra destrua esse corpo inútil.

E parou por um instante, levando a mão à cabeça. Aquele desabafo trouxe uma dor terrível como uma faca quente rasgando o crânio.  

Ângelo esperou um pouco até que o rapaz refletisse bastante sobre tudo o que fora dito até então.

Após uma longa pausa, resolveu falar:

- Bom, de tudo o que você me disse eu consigo extrair duas situações que explicam muito dos sentimentos que você me expôs até agora: bullying e culpa. Eu não posso dizer que a reação que você teve foi certa, mas se justifica pelo medo que você sentia daquele agressor irracional que queria demonstrar seu poder a qualquer custo. O bullying rouba a infância ou adolescência de quem é alvo dele. E foi exatamente o que aconteceu com você. De toda sua adolescência os momentos que mais te marcaram remetem a agressões dessa natureza. Estou certo? - nesse momento Jonas acenou positivamente com a cabeça, de forma constrangida-  Algumas pessoas reagem de uma forma, outras de maneira diferente. Isso varia de um para outro. Porém, o ponto comum disso tudo é que o dano causado é irreversível. As consequências podem ser maiores ou menores, mas existem em todos os casos.

Para que Jonas assimilasse o que fora dito até então, Ângelo pediu dois cafés, fazendo uma pausa para que o rapaz descansasse por um breve momento.

Quando os dois cafés chegaram, notou que Jonas olhava para o fundo da xicara como se enxergasse com tristeza aquele dia. Fitou o café até que uma lagrima rolou de seu rosto.

Era o momento de retomar o raciocínio.

- Vamos falar um pouco sobre culpa – disse Ângelo. Ao contrario do que muita gente pensa, dependendo da intensidade com a qual é sentida, a culpa não é algo tão terrível assim. Desde que em doses moderadas, ela pode representar um aprendizado, uma moldadora de condutas que serve para aperfeiçoar atos de convivência. Todo sentimento ruim pode ser usado a nosso favor. A depressão é um exemplo disso! Ela força o cérebro a trabalhar sem descanso, muito embora essa atividade seja negativa na maior parte do tempo. Porém, se conseguimos utilizar um potencial enorme do nosso cérebro trabalhando pensamentos ruins, podemos usa-lo para as demais situações da vida. Todo sentimento ruim pode ser usado como aliado. A culpa não é diferente. Desde que não seja algo que nos consuma por dentro, ela pode ser usada como um meio de aperfeiçoar nosso “eu”. Mas, no seu caso, a intensidade não permite esse exercício e para que você tenha um pouco de paz, é preciso abandoná-la. Sinto insistir nesse assunto, mas você tem pouco tempo de vida. Se você não se libertar dessa culpa, ainda que um pouco dela, não conseguirá partir em paz. Proponho mais uma vez um exercício: diga-me como você gostaria que aquele dia fosse? O que você mudaria nele?

Jonas procurou as palavras certas, pois não queria jogar ao vento qualquer afirmação. Não tinha tempo para aquilo. Quando se sentiu preparado, tomou um gole do café e levantou a cabeça. Seu olhar era assustadoramente demoníaco como se tivesse retornado naquele dia e a fúria tivesse tomado conta do seu coração. Sem muito relutar começou a falar:

- Se eu pudesse voltar naquele dia talvez pusesse para fora toda a fúria que se apossou do meu coração ao longo de todos esses anos. Quando avistasse meu irmão sendo arrastado por aquele maldito teria voado no pescoço dele e descontado todo o ódio que eu sentia naquele momento, de tudo o que ele já havia feito comigo e do que estava fazendo com meu irmão. Provavelmente eu deixaria um estrago bem grande nos dentes dele e ele pensaria duas vezes antes de fazer o que estava acostumado com qualquer outra pessoa naquele mundo. Deixaria bem claro para todos os expectadores daquela barbárie que, o próximo que mexesse com a minha família teria o mesmo destino. Eu sempre fui uma pessoa inimiga da violência, mas por muito tempo a violência foi meu algoz. Um dos meus maiores arrependimentos foi não ter agido de forma violenta naquele dia. Ainda que eu não agisse dessa forma eu deveria ter defendido o meu irmão e se eu pudesse voltar naquele dia, teria feito isso. Teria defendido ferrenhamente o meu irmão.

Após uma breve reflexão Ângelo disse:

- Não digo que se você tivesse usado a violência teria resolvido seu problema. O que “os violentos” não sabem é que o uso da força traz uma satisfação momentânea que não faz valer os danos causados, esses sim permanentes. A violência não é a resposta, não é a reação mais adequada. Nesse exato momento, a ideia de ter sido violento te trouxe uma satisfação, um prazer. Mas posso assegurar que essa satisfação durará poucos instantes. A linha entra a humanidade e a bestialidade é tênue meu amigo. Em poucos segundos deixamos de ser racionais e passamos a ser bestas violentas e cegas. Vale a pena? Não. Essa é a resposta. A vida desse garoto que te agredia pressupunha a violência, pelo ambiente que viva. Tenha a certeza de que a violência lhe era comum. Ele só sabia agir com esse tipo de violência, que causou tanto dano a todos. Hoje não posso dizer qual foi o destino desse garoto. Mas posso assegurar que a violência o acompanhará para sempre. Pessoas nascidas “no campo de batalha” tendem a viver “no campo de batalha” e tem por destino morrer “no campo de batalha”. Quem conhece a brutalidade e a experimenta, dificilmente a abandona ou acaba se tornando um escravo dela. Considere-se um privilegiado por não ter cedido aos caprichos da violência. Claro que você deveria ter defendido seu irmão, mesmo que tivesse sofrido por causa disso. Porém, imaginemos que você tivesse conseguido dialogar com aquele garoto e mostrado que ninguém incomoda sua família, isso resolveria seu problema? Respondo: sim! Pois você não foi criado em um campo de batalha. Nunca se arrependa por não ter sido violento.

Jonas não sabia o que dizer. Porém a ideia de ter defendido seu irmão, mesmo que sem uso da violência, deixava seu coração mais leve. Sentia-se em paz e aceitava a ideia de ter conseguido dialogar com aquele garoto, ainda que fantasiosa.

Mesmo que tivesse alimentado a ideia de ser violento por toda sua vida, hoje sabia que não era o melhor a fazer. Sentia-se em paz e enxergava aquele dia como o “dia em que o bullying foi enfrentado sem o uso da força”.

Essa é uma conclusão difícil de alcançar sozinho. Porém seu coração estava leve. Estava em paz. Aquele dia não mais o incomodava e poderia partir sem que ele o puxasse para o passado.

Voltou caminhando com dificuldade para seu quarto, apoiando-se em Ângelo. Mas estava satisfeito. Aquela tinha sido a melhor caminhada da sua vida, mas não por ter sido uma das ultimas.

Aquela caminhada foi sua libertação de um sentimento há muito aprisionado e que o prendia a um perfil violento que não o pertencia.

Estava, mais uma vez, em paz.

 

CONTINUA NA PARTE IV

  

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